Aviso: Este artigo inclui conteúdo forte que ilustra a gravidade da violência online contra mulheres, incluindo referências à violência sexual e palavrões de gênero. Este conteúdo não é incluído despropositalmente. É essencial permitir a análise dos tipos, métodos e padrões de ataques contra Maria Ressa.
Uma análise colaborativa de centenas de milhares de postagens de mídia social dirigidas à jornalista filipino-americana Maria Ressa nos últimos cinco anos demonstra o que defensores e jornalistas há muito alertam: a violência online contra jornalistas —especialmente mulheres— é um problema generalizado com consequências offline. Essa violência digital, especialmente quando alimentada pelo Estado, coloca a segurança de jornalistas em risco direto e ameaça a liberdade da indústria de notícias de agir como um quarto pilar eficaz da democracia.
As pesquisadoras Julie Posetti, Diana Maynard e Kalina Bontcheva empregaram o Processamento de Linguagem Natural —que usa linguística, ciência da computação e inteligência artificial, neste caso para analisar grandes conjuntos de dados do Facebook e Twitter— para rastrear o ataque de violência online contra Ressa e sua trajetória de assédio do Estado contra ela. Elas colaboraram com a organização de notícias de Ressa, o site Rappler, na coleta e análise de dados para o estudo, que alimentará um projeto de pesquisa maior encomendado pela Unesco.
O estudo expõe a natureza sexista, misógina, racista e explícita dos ataques contra Ressa e mostra como o abuso online incessante e direcionado pode criar um ambiente que permite que as forças antidemocráticas reprimam jornalistas e suas reportagens.
[Leia mais: Violência online impacta mulheres jornalistas]
É uma "tempestade do século 21", explicam as pesquisadoras. “É um furor de desinformação e ataques -—em que jornalistas confiáveis são submetidos à violência online com impunidade; onde os fatos murcham e as democracias cambaleam.”
Ressa está lutando contra nove processos judiciais separados hoje, o que poderia mandá-la para a prisão pelo resto de sua vida se ela for condenada por todas as acusações. O ataque legal é uma consequência direta de um ambiente gerado pela violência online direcionada.
“As autoridades a difamam e o presidente Duterte ajudou a amplificar os ataques online contra ela. As autoridades estaduais, portanto, atacam Maria diretamente e também criam um ambiente favorável que facilita e estimula o abuso de outras pessoas. Por sua vez, o abuso online encoraja as autoridades na perseguição contra ela”, disse Caoilfhionn Gallagher QC, co-líder da equipe jurídica internacional de Ressa. “Na minha opinião, existe uma relação simbiótica entre o abuso que Maria sofre online e o progresso do assédio legal offline.”
Alguns dos ataques são orquestrados pelo Estado, sugerem as evidências, e são alimentados pela retórica demonizadora do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e de blogueiros e influenciadores pró-Duterte.
Os dados provavelmente capturam apenas metade do vitríolo em inglês ou misturado com inglês-tagalo dirigido para Ressa no Facebook e Twitter, observam as pesquisadoras, devido às limitações na tecnologia de Processamento de Linguagem Natural. Também exclui ataques via Facebook Messenger, que são “os mais brutais que Ressa já sofreu”, de acordo com o relatório. Grande parte do assédio público também é intencionalmente sutil, em parte para iludir as ferramentas automatizadas de rastreamento.
Ao todo, as pesquisadoras analisaram quase 400.000 tuítes e mais de 57.000 postagens e comentários no Facebook dirigidos a Ressa entre 2016 e 2021. Aqui está um resumo de algumas das descobertas:
Natureza dos ataques:
- 60% da violência online visa danos à credibilidade de Ressa como jornalista, incluindo ataques com desinformação e falsas alegações de que ela trafica "notícias falsas".
- 40% dos ataques são classificados como pessoais. Apresentam sexismo significativo, misoginia e linguagem explícita, incluindo ataques à aparência física de Ressa e imagens manipuladas de sua cabeça com órgãos genitais masculinos. Esse tipo de violência também inclui ameaças de estupro e assassinato e tem como alvo a cor da pele e a sexualidade de Ressa.
Método dos ataques
- Os ataques podem ser orquestrados. Uma marca é a criação de contas falsas e de bot. O Facebook às vezes removeu as contas do que eles chamam de “comportamento inautêntico coordenado”, embora sua resposta no geral tenha sido “lamentavelmente inadequada”, segundo Ressa.
- O Facebook é o principal facilitador da violência online contra Ressa. Ela diz que se sente “muito mais segura” no Twitter.
- Os invasores usam hashtags, memes e imagens manipuladas para aumentar o volume e o envolvimentocom seu assédio.
- Os invasores publicam informações pessoais ou privadas reveladoras (doxxing) para encorajar ataques offline contra Ressa.
Gatilhos de ataques
- A violência online contra Ressa aumenta após as aparições importantes que ela faz na mídia, prêmios internacionais que recebe e suas aparições no tribunal.
- Os ataques aumentam na sequência de reportagens investigativas publicadas no Rappler sobre a administração Duterte e em reação aos próprios relatos e comentários de Ressa sobre desinformação e Duterte.
A violência é especialmente pronunciada em sua página profissional no Facebook, onde para cada comentário positivo que os pesquisadores analisaram, ela recebeu 14 ataques abusivo. Um quarto dos mais de 9.400 ataques rastreados de 2015-2018 na página visavam a sua credibilidade profissional e cerca de 14% eram de natureza pessoal. Outros 15% tinham temas políticos, acusando Ressa e seu jornalismo de se oporem a Duterte. Ressa não usa mais a página por causa do assédio.
A desinformação é uma das principais características da violência online que Ressa sofreu, infundida em todos os diferentes tipos de ataques contra ela. Atores malévolos também coordenaram campanhas de "pile-ons" ou "gaslighting", nas quais retratam falsamente o jornalismo de Ressa como atos de desinformação.
As táticas de desinformação usadas contra Ressa e o Rappler seguem o que uma pesquisa da Unesco-ICFJ revelou: que 41% das quase 100 jornalistas entrevistadas disseram ter sofrido violência online que acreditavam estar ligada a campanhas de desinformação orquestradas.
“Esse abuso não só desacredita Ressa e permite seu assédio legal”, observam as pesquisadoras, “também serve para minar ainda mais a confiança do público no jornalismo independente e nos fatos em geral, semeando confusão e minando o pilar democrático da liberdade de imprensa nas Filipinas.”
[Leia mais: Entendendo as batalhas judiciais da jornalista filipino-americana Maria Ressa]
Papel das plataformas de mídia social
A violência online contra Ressa foi mais pronunciada no Facebook, que é a única maneira de a maioria dos filipinos acessar a internet. É também a principal plataforma por meio da qual Duterte e os trolls online pró-Duterte instigam a violência online contra Ressa e outros jornalistas.
A inação do Facebook em combater o ódio e a desinformação em sua plataforma permitiu que a repressão antidemocrática e ameaçadora de sua vida florescesse, como Ressa sempre alertou. Neste estudo, Ressa compara a difusão da desinformação no Facebook ao coronavírus: “É uma comparação perfeita com o vírus da COVID-19, porque o vírus da mentira é muito contagioso. E uma vez infectado, você se torna imune aos fatos.”
Manter as plataformas das Big Techs responsáveis é crucial, disse Ressa. Caso contrário, a desinformação galopante e suas consequências para a democracia nas Filipinas serão replicadas no resto do mundo.
“A única maneira de parar é quando as plataformas forem responsabilizadas”, disse Ressa no estudo. “É como se você escorregasse na calçada gelada de uma casa nos Estados Unidos e pudesse processar o dono da casa. Bem, isso é a mesma coisa. Eles possibilitaram esses ataques. Eles certamente mudaram minha vida de muitas maneiras.”
Recomendações
O estudo oferece dez recomendações para lidar com a violência online contra jornalistas mulheres hoje, tirando lições da experiência de Maria Ressa. Entre elas, as pesquisadoras pedem que os atores políticos sejam responsabilizados por incitar à violência contra as mulheres jornalistas e que as estruturas legais e regulatórias que defendem a liberdade de expressão e a igualdade sejam revisadas e adaptadas para a Era Digital. Elas endossam o estabelecimento de conselhos de mídia social que oferecem recursos para vítimas de abuso online e aconselham as empresas de mídia social a desenvolver equipes especializadas para responder de forma rápida e eficaz a ataques online contra jornalistas.
As organizações de notícias devem fornecer treinamentos e orientações com perspectiva de gênero para a equipe, bem como segurança digital e física integrada e apoio psicológico para mulheres jornalistas que sofrem abusos. As redações também devem produzir reportagens que responsabilizem as plataformas de mídia social por suas ações ou inações e suas políticas, independentemente de quaisquer vínculos que possam ter com as empresas.
Uma lista completa de recomendações e outros recursos podem ser encontrados no relatório aqui.
Se você achou este conteúdo angustiante ou difícil de discutir, você não está sozinho. Existem recursos disponíveis para ajudar. Comece explorando os recursos do Dart Center for Journalism and Trauma e procure apoio psicológico se necessário.
David Maas é diretor da IJNet.
Imagem principal cortesia de Franz Lopez do Rappler