Monitorar o impacto da COVID-19 na remota Amazônia Peruana com sinal de celular irregular é uma tarefa intimidadora. Mas foi precisamente nisso que Fabiola Torres, ICFJ Knight Fellow, e sua equipe do Salud con lupa trabalharam por meses para tornar uma realidade.
Por meio de reportagem de campo, eles descobriram que o número de túmulos recentes em uma única comunidade era três vezes maior que o número de mortes informadas pelo governo para toda a região.
Pouco acesso a testes de diagnóstico, aumento vertiginoso nos casos de dengue e a dependência da medicina natural foram alguns dos motivos que deixaram muitas mortes por COVID-19 na Amazônia Peruana de fora dos números oficiais. A razão mais importante, porém, de acordo com Torres, foi "falta de cuidado".
Torres fundou o Salud con lupa em 2019 para cobrir notícias de saúde na América Latina — incluindo o comumente ignorado "Outro Peru" das comunidades indígenas. Na entrevista abaixo, saiba como ela revelou essa história.
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Você pode explicar para nós o El Otro Perú (O Outro Peru)?
O projeto exemplifica um desafio em países como o meu e outros países latino-americanos que não têm dados suficientes. Neste caso, nós focamos em comunidades indígenas da Amazônia.
Desde que a pandemia começou no Peru, não tínhamos dados sobre essa população por falta de acesso aos serviços de saúde. Ninguém estava registrando mortes por COVID-19. É por isso que funcionários do Ministério da Saúde não forneciam um relatório oficial sobre o impacto da doença nessa parte do país.
Trabalhamos para reunir dados e tentar entender o que tinha acontecido. Para isso, tivemos que fazer muitos pedidos de acesso à informação. Construímos uma base de dados na página do projeto e incluímos matérias explicativas. É importante investigar, porque se não identificarmos quem morreu, as comunidades indígenas ficam em risco.
Quais os principais desafios que você encontrou na coleta de dados?
O principal desafio foram os pedidos de acesso à informação às autoridades. Eles constantemente falavam que não tinham dados, ou somente dados parciais. A maioria das nossas tentativas foram bem-sucedidas se compararmos os números oficiais com a informação que as pessoas coletaram em campo. Essas informações foram coletadas a partir de entrevistas com muitos líderes indígenas na condição de fontes mais confiáveis. O Ministério da Saúde [do Peru] registrou 148 mortes de indígenas durante a pandemia. Isso é falso. Sabemos que mais de 400 morreram em uma única comunidade. Isso mostra que eles não estão tendo cuidado com os dados e não estão documentando o que aconteceu. Nosso objetivo era contar a história verdadeira.
Parece que o governo negligenciou completamente essas comunidades.
Sim, estamos tentando expor para os peruanos o que aconteceu nesta parte do país. Se você for na página [da investigação], vai ver que incluímos um cemitério cheio de túmulos sem identificação. Agora há um esforço de muitas famílias para tentar identificar seus entes queridos que foram enterrados ali.
Isso te mostra o impacto real. É impossível que os dados oficiais representem a nossa realidade. É por isso que, como jornalistas, decidimos investir tempo nesse projeto.
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Teve algo mais que te surpreendeu durante a investigação?
Sim, nós sabemos que os epidemiologistas e o Ministério da Saúde no Peru têm informação. Eles criaram um site, mas ele tem informação seletiva. Isso é uma surpresa para mim porque em março deste ano eles criaram um grupo independente de cientistas para monitorar os números relacionados à pandemia. O Peru é um dos países com a maior taxa de mortalidade de COVID-19 da região.
Mas todos esses dados são generalizados. Quando você busca por etnia ou status indígena, não há respostas. Entrevistamos os cientistas que fizeram esse trabalho e eles disseram que não tinha como filtrar essa informação nas bases de dados oficiais.
Eu fiquei surpresa porque as pessoas mais vulneráveis no meu país são os indígenas e eles estão distantes da capital. Isso mostra uma falta de cuidado com o que aconteceu naquela parte do país porque eles não coletaram informações, apesar de terem os recursos para fazê-lo. A contagem oficial não é verdadeira.
Qual conselho você dá para jornalistas que desejam realizar um projeto de dados dessa abrangência?
É muito importante trabalhar com pedidos de acesso à informação pública ou dados públicos. Mas se isso não for o bastante, tente fazer a matéria com outras fontes. Muitas pessoas podem acabar lendo o projeto por encontrarem pouca consistência na busca por informação.
Você sabe que tem uma realidade diante de você, mas ela não é revelada pelos números oficiais. Alguns repórteres vão dizer que se não temos dados oficiais, não temos a matéria, mas não é verdade. Há formas alternativas de abordar o problema e fazer uma representação precisa da situação.
O projeto El Otro Perú pode ser lido aqui. Leitores interessados no processo de coleta de dados podem começar pela metodologia de reportagem.