Como o governo da Índia usa o Pegasus para espionar jornalistas

por Hanan Zaffar and Jyoti Thakur
Feb 14, 2024 em Liberdade de imprensa
Image of surveillance camera

Quando uma investigação conjunta publicada em dezembro de 2023 pela Anistia Internacional e o The Washington Post revelou que jornalistas na Índia estavam sendo perseguidos pelo software espião Pegasus, Siddharth Varadarajan, editor fundador do The Wire, não se surpreendeu que o seu telefone estava entre os vigiados.

"Considerando o ambiente atual, não fiquei chocado quando meu nome apareceu na lista de espionagem", diz.

Desenvolvido pela empresa israelense NSO Group, e vendido somente para agências governamentais e forças de segurança, o Pegasus é uma arma cibernética capaz de se infiltrar em celulares e coletar uma vastidão de dados de mensagens de texto, emails, dentre outros. Ele também pode ativar câmeras e microfones de celulares – tudo sem o conhecimento do dono do aparelho.

"Eu fiquei bastante irritado com o fato de autoridades ainda perseguirem jornalistas por causa do trabalho deles", diz Varadarajan, que também esteve entre os 40 jornalistas indianos perseguidos pelo programa espião em 2021. Um total de mais de 300 números de telefone na Índia constavam naquele ano em uma lista de pessoas vigiadas por clientes da empresa, de acordo com o Pegasus Project, uma investigação da Anistia Internacional e do Forbidden Stories. Além de jornalistas de destaque, a lista incluía o líder do Congresso, Rahul Gandhi, e o ex-comissário eleitoral  Ashok Lavasa – ambos considerados ameaças ao partido atualmente no poder, o Partido Bharatiya Janata (PBJ) – bem como vários ativistas, políticos de oposição, dentre outros.

"Apesar de eu ter ficado bastante incomodado ao perceber, em 2021, que estava sendo perseguido com o Pegasus, o The Wire provavelmente lidera a lista de plataformas de mídia que não agradam ao atual governo, por isso nunca foi uma surpresa pra mim", diz Varadarajan.

Morte da liberdade de imprensa

O governo indiano vem sendo acusado há anos de usar programas de acesso ilegal contra dissidentes e adversários. Em 2018, o Pegasus teria sido usado para espionar ativistas e defensores dos dalits, supostamente acusados de envolvimento nos atos violentos de Bhima Koregaon, no oeste de Maharashtra. Muitos dos ativistas ainda estão presos e alguns foram vigiados novamente pelo Pegasus três anos depois.

Em outubro de 2023, a Apple emitiu notificações de ameaças para usuários de iPhone que poderiam ter sido alvo de "ataques patrocinados pelo estado". Na Índia, pelo menos 20 políticos de oposição e jornalistas, incluindo Varadarajan, teriam recebido as notificações.

A polêmica gerou debates novamente sobre privacidade e a decadente liberdade de imprensa no país, que foi rebaixada de "problemática" para "muito ruim" no Índice de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras.

"O uso de programas de espionagem contra jornalistas simplesmente significa a morte da liberdade de imprensa porque a ideia é impedir que a gente trabalhe em pautas que o governo gostaria de esconder". diz Varadarajan. 

Ele não está sozinho entre os jornalistas que acreditam que ataques de vigilância patrocinados pelo estado não são mais uma surpresa – principalmente sob o governo hindu fundamentalista do PBJ, que está no poder desde 2014 e vai disputar seu terceiro mandato no fim deste ano.

"Eu sinto que esse governo removeu a essência da minha privacidade", diz Swati Chaturvedi, jornalista investigativa e autora que vive na Índia e também foi perseguida pelo Pegasus.

"Como uma mulher, eu estava sendo espionada 24 horas por dia, sete dias por semana pelo poder estatal até nos meus momentos privados", diz. "Quando você se torna uma jornalista, você não consente com esse tipo de abuso, principalmente em uma democracia do seu próprio governo." 

Jornalistas indianos também enfrentam assédio e intimidação de agências governamentais com frequência, dentre outras formas de retaliação devido ao seu trabalho.

Nenhuma responsabilização

Desde a revelação das descobertas do Pegasus Project em 2021, especialistas em direitos digitais e partidos de oposição exigiram que o governo assumisse a responsabilidade e propusesse uma lei que tratasse de proteção de dados e direitos de privacidade.

O governo do PBJ nunca negou explicitamente o uso do Pegasus, mas rejeitou os resultados do Pegasus Project, chamando-o de uma "conspiração" da oposição e de organizações globais para desestabilizar o progresso da Índia. 

"Ao não ser honesto, o governo dá impressão de que não houve atividade ilegal", diz Prateek Waghre, diretor-executivo da Internet Freedom Foundation. "Isso significa que você tem que acreditar na palavra do governo de olhos fechados porque não tem como você saber o que de fato aconteceu."

Para determinar se o programa de espionagem foi usado para vigiar cidadãos, a Suprema Corte da Índia criou um comitê técnico para investigar as revelações de 2021 do Pegasus Project. As conclusões da investigação foram vedadas e nunca vieram a público, uma decisão que especialistas acreditam levantar questões sobre a falta de transparência das instituições indianas. "A falta de supervisão do judiciário e do legislativo encorajou o governo a usar o Pegasus outra vez sem enfrentar nenhuma consequência", diz Waghre. 

Dificuldade para exercer o jornalismo

Devido à falta de privacidade e aumento no assédio, repórteres na Índia consideram estar mais difícil do que nunca fazer seu trabalho.

"Eu recebi o prêmio de coragem da Repórteres Sem Fronteiras em 2018, mas não quero ser considerada um exemplo de coragem", diz Chaturvedi, que tem sido um dos principais alvos de trolls e de ameaças nas redes sociais. Chaturvedi vê a si mesma como uma jornalista que simplesmente está tentando fazer seu trabalho, não como uma ativista.

"Se o governo se vingar de mim por eu fazer meu trabalho e me importunar em escala industrial, então fica simplesmente impossível exercer minha profissão, principalmente quando você não tem suporte institucional", diz.

Sem recursos legais ou proteção de dados implementados, jornalistas no país são cautelosos no uso de celulares durante o trabalho.

"Hoje, tememos principalmente pela segurança de nossas fontes e contatos", diz Varadarajan. "É como um golpe duplo ter que proteger não só a si mesmo como às suas fontes, porque as autoridades parecem ter acesso a quase tudo que fazemos nos nossos celulares." 


Foto por Tobias Tullius via Unsplash.