Mulheres jornalistas reagem ao silenciamento provocado pela violência online

Jun 6, 2023 em Liberdade de imprensa
Stage with Cadwallr, Ressa, Ayuub, Posetti and Spring. Spring and Ressa are on a T.V. screen behind the stage

A violência online contra mulheres jornalistas atualmente é cada vez mais organizada, direcionada e pessoal. Estes ataques de desinformação colocam a segurança física e psicológica das mulheres em risco preocupante.

É preciso dar passos concretos para lidar com os ataques online contra as jornalistas e suas consequências potencialmente devastadoras, clamou Julie Posetti, vice-presidente adjunta de pesquisa global do ICFJ, e Nabeelah Shabbir, pesquisadora sênior do ICFJ, em uma série de painéis no Festival Internacional de Jornalismo em Perugia, na Itália, em abril.

"A coisa mais importante é deixar claro que a violência online não é um mal menor – ela precisa realmente ser reconhecida e trazida à tona", disse Posetti no Festival. "A violência online é feita em partes para suprimir, arrefecer, silenciar e efetivamente reverter os direitos das mulheres que tiveram ganhos ao longo das décadas."

O combate à violência começa com a identificação de padrões de abuso e requer o desenvolvimento de ferramentas, técnicas e políticas mais eficazes. Organizações de mídia, redes sociais e governos precisam todos oferecer um suporte melhor.

"Você precisa transferir o ônus de mensurar a violência de gênero de uma jornalista sob ataque para a empresa jornalística que a contratou, os atores políticos que estão frequentemente instigando e alimentando os ataques e as plataformas digitais que são os vetores desse abuso", disse Shabbir durante seu painel realizado pela Coalizão Contra a Violência Online, que discutiu o apoio à saúde mental de jornalistas sob ataque. 

Posetti e Shabbir estão criando dois novos recursos para jornalistas para ajudá-las a identificar melhor os ataques que sofrem e usarem essa informação para lutarem por mudança.

Saiba a seguir como elas estão fazendo isso e por que é importante.

O escopo da violência

Cerca de três em cada quatro mulheres jornalistas – 73% – já sofreram violência online enquanto trabalhavam, de acordo com o The Chilling, um estudo global do ICFJ e da UNESCO sobre violência online direcionada às jornalistas. Desse total, 25% receberam ameaças de violência física e 18%, de violência sexual. Uma em cada cinco mulheres entrevistadas relataram que casos de abuso ou violência offline começaram antes online.

Os agressores online fazem ameaças de morte, vigiam e interceptam dados pessoais das jornalistas – por exemplo, hackeiam e espalham fotos pessoais – e fazem ameaças de ataques a familiares e amigos próximos. A violência de gênero online muitas vezes também assume um ângulo interseccional, atacando não só o gênero da jornalista como também sua religião, raça, identidade sexual e idade. 

"É como se um grupo de linchamento virtual estivesse te atacando", disse Raya Ayyub, colaboradora do Washington Post durante um dos painéis de Posetti. "Não se trata mais só sobre o risco de trabalhar na internet", disse a jornalista, destacando que ela é atacada, em média, a cada 14 segundos online.

Consequências físicas

A violência online leva a ataques físicos, criando um ambiente em que se teme que o abuso vá além da internet. Quem pratica violência online também raramente é responsabilizado por suas ações. Eles sabem disso e usam esse fato para intimidar ainda mais as jornalistas, disse a jornalista norte-irlandesa Patricia Devlin. "Essa impunidade se mantém; ela se mantém em múltiplas ameaças contra jornalistas."

No caso de Devlin, as ameaças online a fizeram mudar repetidas vezes os protocolos de segurança com proteção policial. Porém, mesmo depois de uma ameaça crível de estupro e ataque contra seu filho recém-nascido no Facebook Messenger, a polícia não fez nada para prender o criminoso. 

"Se a polícia não consegue prender um homem que envia uma ameaça de estupro contra o bebê de uma jornalista, com evidência, como vamos fazer alguma outra coisa?", disse Devlin.

Cada vez mais, os trolls e disseminadores de desinformação online estão aprendendo uns com os outros. Um exemplo é o termo "imprenstituta", que apareceu primeiro na Índia e depois foi usado por apoiadores de Elon Musk para atacar Marianna Spring, repórter da BBC que cobre desinformação no Reino Unido, quando ela fez uma matéria sobre a proliferação de discurso de ódio, desinformação, racismo e ataques misóginos no Twitter após Musk assumir a plataforma. 

Os ataques online contra Spring explodiram principalmente depois que Musk postou em sua conta uma captura de tela de um dos tweets da jornalista e disse que ele estava "gargalhando" com as descobertas da reportagem. "Dentro de poucos minutos, o tweet de Musk revelou o que a investigação havia mostrado", disse Spring.

Exploração da lei

Os ataques online são também cada vez mais coordenados, frequentemente apoiados ou dirigidos por atores poderosos em governos nacionais e feitos para plantar as sementes de futuras ações legais contra as jornalistas.

"O que começa como uma mentira, o poder usa para virar a realidade de ponta-cabeça", disse Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2021, em uma participação por videochamada, na qual refletiu sobre sua própria experiência como alvo de crimes de difamação e acusações fiscais forjadas e inúmeras tentativas legais de fechar seu veículo independente nas Filipinas, o Rappler.  

As mentiras espalhadas na internet criam a ideia de que as jornalistas são criminosas. Depois, funcionários do alto escalão de governos as reproduzem, explica Ressa. Elas criam as bases para a prisão de jornalistas e o fechamento de redações.

Campanhas de desinformação também podem impulsionar questões divisivas com elementos pesados de "guerra cultural" em democracias ocidentais, como o voto do Brexit no Reino Unido. "Pelo fato de eu estar cobrindo algo controverso – o Brexit, isso fez de mim uma figura controversa", disse a jornalista britânica Carole Cadwalladr, que escreve para o The Observer. "O assunto polêmico deu permissão para um ambiente de ações legais contra mim."

Os ataques contra Cadwalladr assumiram temas sexistas recorrentes, acusando-a de ter problemas intelectuais ou ser louca, como uma forma de tirar o crédito de seu trabalho. Mais tarde foi revelado que o financiador pró-Brexit e cofundador da Leave.EU, Arron Banks, que a processou por difamação devido às suas investigações jornalísticas, era de fato um dos principais criminosos dos ataques de desinformação contra ela.

As ferramentas

Posetti e Shabbir estão à frente do desenvolvimento do Sistema de Alerta Precoce de Violência Online em parceria com cientistas da computação da Universidade de Sheffield, que permite que organizações jornalísticas e da sociedade civil monitorem e respondam em tempo real a ataques contra jornalistas.

Ao usarem a ferramenta, as organizações vão conseguir identificar e analisar melhor hashtags, contas e palavras-chave comuns usadas por agressores de violência online. Os dados também vão ajudar a destacar a escala e severidade dos ataques para que as autoridades e instituições – como agências legais, justiça, estados, chefes de redação e organizações intergovernamentais – os levem a sério.

"Parte do que precisa ser feito é entender definitiva e completamente que há uma natureza de gênero nesses ataques e compreender o fato de que danos psicológicos também são acidentes de trabalho, isso é sério", disse Shabbir.

Juntamente com a Organização para Segurança e Cooperação na Europa, Posetti, Diana Maynard, da Universidade de Sheffield, e Shabbir também estão criando diretrizes para monitoramento da violência online para organizações jornalísticas, com o objetivo de incutir "uma cultura de redação com mais consciência de gênero" que prioriza a saúde mental das jornalistas diante dos ataques sexistas online, disse Shabbir.

Todas as jornalistas que compartilharam suas experiências como alvo de violência online enfatizaram a importância de reconhecer o dano físico que os ataques causam. Os ataques também não vão ficar somente nas jornalistas, elas alertam – elas são somente os primeiros alvos.

"Nós somos a primeira onda", disse Cadwalladr. "É só o primeiro sinal do perigo."


Foto por Devin Windelspecht.


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Jornalista freelancer

Devin Windelspecht

Devin Windelspecht é editor da Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet). Antes de trabalhar na IJNet, ele era jornalista freelancer e cobria preservação e direitos humanos.