A inteligência artificial (IA) está transformando o jornalismo no mundo todo, mas boa parte do debate sobre o impacto dessa tecnologia vem sendo dominado por perspectivas do Norte Global.
Um novo relatório da Thomson Reuters Foundation (TRF), baseado nas descobertas de uma pesquisa com mais de 200 jornalistas de mais de 70 países do Sul Global e economias emergentes, busca resolver isso.
O estudo, do qual sou um dos autores, lança luz sobre a forma como a IA está sendo usada, os desafios únicos enfrentados por essas redações e as implicações do cenário atual para jornalistas, chefes de redação, financiadores e formuladores de políticas. A seguir estão algumas das principais conclusões:
(1) A adoção da IA é generalizada, mas desigual
A pesquisa identificou um "otimismo cauteloso" com tecnologias de IA, um sentimento que talvez contradiga o fato segundo o qual a adoção da IA entre a amostra do estudo no Sul Global seja significativa. Mais de oito em cada dez (81,7%) jornalistas usam ferramentas de IA em seu trabalho.

Quase metade deles (49,4%) usa IA diariamente, demonstrando a rapidez com que a tecnologia passou a fazer parte do fluxo de trabalho.
Jornalistas estão usando a IA generativa principalmente para rascunhar e editar conteúdo, transcrever, verificar fatos e pesquisar. Ferramentas como ChatGPT, Grammarly, Otter e Canva rapidamente se tornaram essenciais para muitos jornalistas, pela possibilidade que esses recursos trazem de poupar tempo e criar eficiência ao mesmo tempo em que aprimoram as ideias e criatividade dos profissionais.
Conforme nos disse um jornalista de Gana, "a IA melhorou significativamente o meu trabalho. Ela aperfeiçoou minha pesquisa e permitiu que eu analisasse dados complexos rapidamente e com precisão, particularmente em áreas como pesquisa sobre o HIV e reportagem de meio ambiente".
(2) Acesso, capacitação e lacunas nas políticas são barreiras para a adoção da IA
No entanto, apesar de todo o entusiasmo em torno da IA, a pesquisa também revelou uma dura realidade: somente 13% dos respondentes afirmaram que a redação onde trabalham tem uma política de IA formal. Essa falta de orientação estruturada significa que o uso da IA na maioria das vezes fica a cargo de cada jornalista, criando inconsistências na implementação e gerando preocupações éticas que os jornalistas conhecem bem.

A adoção da IA também enfrenta outras barreiras. Muitos jornalistas relataram obstáculos como acesso limitado a ferramentas de IA, custos altos e falta de capacitação, juntamente com a falta de orientação por parte de seus superiores. Para alguns, particularmente aqueles que trabalham em redações com poucos recursos, a adoção da IA continua sendo um desafio, na maioria das vezes devido a restrições financeiras e tecnológicas.
Uma das descobertas mais impressionantes foi que 58% dos usuários de IA são autodidatas, com pouca ou nenhuma capacitação formal fornecida por seus empregadores. Isso traz oportunidades para organizações que atuam na área, já que os jornalistas expressaram querer bastante oficinas focadas em IA, orientações éticas e políticas desenvolvidas pelas redações que poderiam ajudá-los a usar todo o potencial da IA com responsabilidade.
Assim como explicou um chefe de redação nos Emirados Árabes Unidos, "modelos com clareza ética e orientações de regulamentação para o uso de IA nas redações são essenciais para manter a transparência e a confiança da audiência, principalmente em relação ao conteúdo gerado por IA".
(3) Desinformação, vieses e ameaça à seguridade trabalhistas são riscos
Ao mesmo tempo em que a IA tem benefícios claros, jornalistas também preocupam-se com os riscos envolvidos. Um editor do Paquistão resumiu esse cenário dizendo que "a IA tem o potencial de reformular completamente o jornalismo, oferecendo ferramentas que podem melhorar a eficiência e criação de conteúdo. Porém, não é certo se essa mudança será inteiramente positiva".
Entre as principais preocupações relatadas pelos respondentes da pesquisa estão:
- Desinformação e viés: quase metade (49%) dos respondentes preocupam-se com a possibilidade da IA dar mais espaço para conteúdo falso ou enganoso, especialmente tendo em vista que a maioria dos modelos de IA é treinada em conjuntos de dados focados no Ocidente;
- Erosão de habilidades jornalísticas: muitos temem que o excesso de dependência em IA possa enfraquecer a capacidade de julgamento editorial, reportagem original e criatividade. "Não deveríamos permitir que ela se apodere do pensamento crítico", disse um respondente de Uganda;
- Perda de postos de trabalho: com a IA automatizando tarefas como resumos de notícias e criação de conteúdo, alguns jornalistas temem que a tecnologia possa gerar perda de vagas de emprego, principalmente em cargos de nível iniciante. Um jornalista do Quênia compartilhou suas preocupações ao afirmar temer que "uma grande maioria de jornalistas vai ficar sem emprego devido à perda de trabalho para a IA e sistemas alimentados por IA".
Os respondentes também temem que a IA gere mais conteúdos genéricos e sem singularidade. De acordo com um editor da Arábia Saudita, "se todo mundo usa as mesmas ferramentas do mesmo jeito, isso pode fazer com que os jornalistas percam sua distinção e singularidade".
(4) Ética, regulamentação e capacitação devem ser os próximos passos
Considerando que a IA vai continuar remodelando o jornalismo, muitos respondentes enfatizaram a necessidade de diretrizes éticas e marcos regulatórios abrangentes para todo o setor. Mais da metade dos jornalistas (57,1%) considera a questão ética o desafio mais urgente no curto prazo nesse cenário.

Alguns jornalistas defendem políticas de transparência no uso de IA que obriguem as redações a explicitar quando a tecnologia é utilizada. Outros demandam regulamentações do governo e do setor para lidar com a desinformação, privacidade de dados e acesso justo à IA por parte das redações de países em desenvolvimento.
"Seria bom ver mais debates na profissão sobre questões éticas ligadas ao uso da IA", disse um jornalista da Rússia. "Minha preocupação é que, na busca pela atenção da audiência e tráfego, as redações negligenciem os padrões jornalísticos."
Pensando no futuro, jornalistas do Sul Global enxergam a IA como uma ferramenta que pode melhorar seu trabalho, desde que usada com responsabilidade.
Um participante da Índia explicou essa dicotomia: "a IA oferece vantagens significativas — velocidade, análise de dados e eficiência — que podem melhorar o alcance e a acessibilidade do jornalismo. No entanto, também traz desafios como desinformação e riscos à integridade do jornalismo, o que torna o seu impacto geral contraditório, porém cautelosamente otimista".
Conclusão: um chamado para a ação
Para que a IA realmente traga benefícios para o jornalismo no Sul Global, o relatório termina com recomendações para jornalistas, financiadores, organizações para o desenvolvimento da mídia e formuladores de políticas. As sugestões abarcam iniciativas em cinco áreas principais:
(1) Capacitação e desenvolvimento de habilidades: investir no treinamento em IA e ética para jornalistas;
(2) Marcos éticos: desenvolver diretrizes que priorizem a transparência e prestação de contas das redações e compartilhá-las com a audiência;
(3) Colaboração: estimular parcerias entre organizações de mídia, desenvolvedores e financiadores para criar ferramentas de IA adequadas para as diversas necessidades jornalísticas;
(4) Regulamentação e políticas: estabelecer salvaguardas legais para proteger o papel do jornalismo (inclusive nossas fontes) na era da IA e esforços para garantir que vieses ocidentais e da língua inglesa nos sistemas de IA sejam ativamente tratados;
(5) Acesso equitativo: garantir que os benefícios da IA não se limitem a redações grandes e com muitos recursos.
Com a adoção da IA acelerando, jornalistas, redações e formuladores de políticas precisam trabalhar juntos para garantir que a tecnologia não enfraqueça, mas sim fortaleça os princípios fundamentais do jornalismo.
Apesar da adoção generalizada, apenas 42% da nossa amostra se mostrou positiva em relação ao uso futuro de tecnologias de IA, sugerindo que o impacto dessas ferramentas ainda está em aberto. Nosso relatório detalha essas preocupações e como lidar com elas. Vai ser fascinante ver se a percepção sobre a IA mudará nos próximos anos e se os jornalistas no Sul Global vão continuar vendo a IA como um ativo ou como uma potencial desvantagem e ameaça ao seu trabalho no futuro.
Elise Racine & The Bigger Picture / Better Images of AI / Web of Influence I / CC-BY 4.0.