Serra Leoa vive uma rara abertura à liberdade de imprensa

Jul 13, 2022 em Liberdade de imprensa
Freetown, Sierra Leone

A liberdade de imprensa está em declínio no mundo todo, em meio ao crescimento da "mídia de opinião" alimentada por desinformação nas sociedades democráticas e censura e propaganda governamental em autocracias.

Serra Leoa, no entanto, está indo na direção oposta. O país do Oeste da África subiu 29 posições no ranking de liberdade de imprensa de 2022 do Repórteres Sem Fronteiras (RSF), para o 46º lugar global — comparável ao Uruguai, à Coreia do Sul e aos Estados Unidos.

A rápida ascensão do país na contramão das tendências mundiais é resultado da revogação da Lei Criminal de Difamação e Sedição de 1965, que até então era usada para reprimir jornalistas e críticos ao governo.

"Um ano após a revogação da lei, 130 jornais impressos registrados, 165 emissoras de rádio registradas e 42 canais de televisão registrados seguem funcionando livremente", disse o president Dr. Julius Maada Bio em uma coletiva de imprensa no ano passado. 

Atualmente, "não há nenhum jornalista preso por exercer a profissão", disse.

Um raro feixe de luz em uma época de declínio da liberdade de imprensa, Serra Leoa oferece um modelo em potencial para a mídia, a sociedade civil e governos reformistas de outros países para melhorar as condições da mídia independente.

Revogação da lei anti-imprensa

Em 1991, Serra Leoa passou por uma guerra civil brutal, quando a Frente Revolucionária da Libéria tentou derrubar o governo. A guerra durou 11 anos e teve uma solução momentânea com a assinatura de um acordo de paz — os Acordos de Paz de Lomé — em 1999. No entanto, as hostilidades continuaram e militares britânicos fizeram uma intervenção no ano 2000, levando dois anos tumultuados para proteger o governo da ascensão de grupos rebeldes.

Finalmente, ocorreram eleições formais em 2002, e logo após o então eleito presidente Ahmad Tejan Kabbah declarou o fim oficial da guerra. Após o conflito, uma comissão da verdade e de reconciliação foi estabelecida para tratar das causas e efeitos da guerra e criar uma plano de ação para o futuro.

Entre as recomendações: revogar a lei de difamação de 1965, que contribuía para a cultura de corrupção e medo.

"A natureza da lei era tão terrível que o dono do jornal poderia ser preso, o editor poderia ser preso, o repórter e às vezes até o chefe que estava lendo o material", diz Mohammad Swaray, Ministro das Telecomunicações de Serra Leoa, que orientou a revogação. 

Apesar da recomendação, a lei não chegou a ser revogada naquela época, e quem estava no poder continuou usando-a para assediar e prender jornalistas. O presidente Bio, eleito em 2018, e que durante a guerra civil era chefe de estado do governo militar, foi o primeiro governo a apresentar uma plataforma política de revogação da lei.

“Além da Comissão de Reconciliação, sucessivos relatórios da Comissão Nacional de Direitos Humanos apontaram que [a lei de difamação] não era um modelo de boa governança, liberdade de imprensa e democracia”, diz Swaray. “O primeiro passo foi alinhar nossas leis com outros tratados internacionais dos quais fomos signatários. Queríamos ser bons concorrentes. Queríamos ser uma nação em conformidade com as regras.” Ele também observou que, enquanto a lei de difamação estava em vigor, pessoas foram presas e negócios foram fechados. “Não é o ambiente mais propício para atrair investimentos. Argumentamos isso também [com o parlamento]”, disse ele.

Em 28 de outubro de 2020, após dois anos de lobby contra a lei em um esforço para atrair apoio bipartidário, o governo Bio a revogou, encerrando a prática de criminalização do jornalismo no país. Valer-se da vontade política de funcionários proeminentes para revogar a lei foi fundamental. “Mesmo com a melhor das intenções, se você não tiver vontade política nos níveis mais altos, nunca poderá chegar onde chegamos e onde desejamos chegar”, diz Swaray.

Construindo uma mídia saudável

Embora a revogação da lei tenha criado as bases para uma nova mídia independente em Serra Leoa, décadas de repressão esvaziaram a mídia existente no país. Os jornalistas não tinham dinheiro nem recursos para trabalhar adequadamente, criando um ambiente propício para o jornalismo do envelope marrom, como é chamada na África a prática de propina paga em troca de uma cobertura positiva.

“[A mídia] precisa de muito apoio financeiro. A economia em Serra Leoa é muito pequena e tem um PIB muito baixo. Existe um setor de publicidade que é muito pequeno e só alcança um grupo muito pequeno de pessoas. A maioria dos veículos não é viável”, diz Maha Taki, consultora sênior de desenvolvimento de mídia da BBC Media Action.

Em abril, mais de 300 funcionários do governo, mídia independente e grupos internacionais de apoio à mídia – organizados pelo programa PRIMED da BBC Media Action – se reuniram para uma conferência na capital do país, Freetown, para planejar como revitalizar o ecossistema de mídia de Serra Leoa. Eles produziram um relatório sugerindo mudanças para o governo e a Comissão Independente de Mídia de Serra Leoa (IMC na sigla em inglês). As recomendações incluíam um fundo nacional para o jornalismo de interesse público, anúncios mais transparentes e financiamento do governo para o desenvolvimento da mídia. As propostas já foram aprovadas pelo IMC e pelo parlamento de Serra Leoa, diz Taki, e aguardam a aprovação do gabinete do presidente.

“Todas as nossas recomendações precisam ser postas em práticas para que o setor de mídia seja saudável. Acho que se pelo menos algumas delas forem seguidas nos próximos anos, já será uma grande melhoria para a mídia em Serra Leoa”, diz Taki.

Lições aprendidas

Apesar do sucesso de Serra Leoa na construção de uma mídia livre e independente, ainda há alguns desafios. Muitos jornalistas ainda são mal pagos e embora as ameaças aos repórteres não sejam tão sistemáticas quanto na época da lei de difamação, elas não acabaram por completo, conforme evidencia a recente tentativa de assassinato de um jornalista de TV em abril.

"A situação dos jornalistas não é a ideal em termos de remuneração. Muitos estão apenas tentando lutar para serem pagos de acordo com os padrões e a segurança de jornalistas", diz Sadibou Marong, diretora da RSF no Oeste da África.

E embora jornalistas não sejam mais presos, alguns ainda sofrem com assédio. "É uma obrigação do Estado assegurar que jornalistas possam trabalhar livremente e sem assédio das forças de segurança", diz Marong.

Mesmo assim, o exemplo de Serra Leoa é um modelo em potencial para ativistas de mídia e governos reformistas do mundo todo aperfeiçoarem a liberdade de imprensa em seus respectivos contextos. Uma das chaves para replicar o sucesso de Serra Leoa, diz Taki, é oferecer apoio internacional para sustentar a vontade política de realizar reformas. "Sempre falamos sobre como os astros se alinharam para o nosso trabalho, porque essa abertura é realmente uma combinação de vontade política."

"Eu acho que é bastante replicável", continua. "Estamos conversando com as equipes dos países do Oeste da África e dizendo: vocês enxergam algum tipo de abertura, mesmo que não seja na mesma extensão do que acontece em Serra Leoa? Vocês precisam capitalizar em cima disso e contribuir para forçar essas melhorias o máximo possível. Temos que basicamente trabalhar com o que temos e trabalhar devagar."

Ainda que a vontade política e o apoio internacional tenham melhorado a liberdade de imprensa em Serra Leoa, o futuro está longe de estar certo. O resultado das próximas eleições neste ano pode fechar a breve janela de vontade política, enfraquecendo os compromissos com a imprensa livre.

Ter uma imprensa livre é de interesse não só da mídia, mas de governos democráticos também, explica Swaray. "A imprensa e os governos estão em um casamento de conveniência devido à natureza dos nossos trabalhos. Nossos caminhos sempre vão se cruzar", diz. "Sem a imprensa, pode haver ditadura e tirania. Sem governos, vai haver atrofia, por isso temos que trabalhar juntos."


Foto por Social Income no Unsplash.