Omissões recorrentes na cobertura mundial sobre a invasão à Ucrânia

Apr 20, 2023 em Reportagem de crise
Person stands in front of Ukraine flag

Um ano depois de conversar com várias jornalistas ucranianas importantes e escrever sobre as experiências delas durante a guerra da Rússia contra a Ucrânia, eu voltei a ter contato com duas delas, Angelina Kariakina e Nataliya Gumenyuk. Nós falamos sobre como as vidas delas mudaram e quais pautas relacionadas à guerra que veículos do mundo estão falhando em cobrir.

Tanto Kariakina quanto Gumenyuk refletiram sobre a intensificação de privações diárias, a exaustão, os danos emocionais da perda de vida e a culpa generalizada do sobrevivente. O custo de sobreviver é alto, assim como também o é a esperança crescente delas em um futuro melhor, o elemento que une todos os ucranianos. 

O que frustra em partes essa esperança são as lacunas e vieses na cobertura jornalística global da guerra identificadas por Kariakina e Gumenyuk. A minha investigação a seguir expõe uma divisão sul-norte interessante no ângulo da cobertura que demanda análise mais aprofundada. 

(1) Contextualize as informações que os leitores precisam saber 

Uns dias atrás, em um restaurante com uma amiga estudada e bem sucedida, nós começamos a falar sobre a guerra. Por um momento, ela se curvou e sussurrou: "Sabe de uma coisa, eu realmente não entendo por que essa guerra começou."

Assim como a maioria da audiência no mundo todo, essa amiga carece de informações de contexto importantes sobre a invasão da Rússia. Isso tem relação com a análise de Kariakina segundo a qual o noticiário global está omitindo contexto de sua cobertura, principalmente no que diz respeito à história de colonialismo da Rússia na Ucrânia. "A estratégia de guerra está sendo coberta", ela diz. "Mas há um problema contextual maior que está passando batido que torna mais difícil parar essa guerra: a ameaça de morte da Rússia enquanto um império. O mundo não entende que a Rússia trata a Ucrânia como se fosse uma colônia russa."

Eu verifiquei esse argumento solicitando à AKAS uma análise de matérias sobre a guerra na Ucrânia publicadas em 2022. Espantosamente, descobrimos que a Segunda Guerra Mundial é mencionada com nove vezes mais frequência que o colonialismo. Além disso, há uma nítida divisão norte-sul, com os veículos do Sul Global mais propensos a usar o enquadramento do colonialismo do que aqueles do norte, que em sua maioria deixaram passar esse ângulo. Talvez o ponto cego dos países ocidentais em relação ao seu próprio passado colonial esteja impedindo os jornalistas de cobrir com eficácia o ângulo colonialista em relação a essa guerra.

 

Table of news analysis

Veículos que cobrem a guerra na Ucrânia têm o dever de explicar às suas audiências que no início do século XX a Ucrânia foi repartida entre os impérios russo e austro-húngaro. Vista em Moscou como "Pequena Rússia", a Ucrânia tentou conquistar a independência desde então, mas só atingiu o feito após o colapso do comunismo em agosto de 1991. Isso deixou os nacionalistas russos sentindo-se traídos.

(2) Considere as normas sociais prevalentes na Rússia

É importante lançar luz sobre normas sociais na Rússia que reprimem a liberdade de expressão e apoiam a guerra ao encorajar, de forma crucial, a ignorância dos russos sobre seu passado. "A Rússia nunca desconstruiu os 70 anos de União Soviética. Os russos nunca pensaram criticamente sobre seu passado", diz Kariakina. 

Essa ignorância facilita a repetição do passado repressor. Desde que chegou ao poder, em 2000, Putin tem feito um esforço orquestrado para suprimir e reescrever o passado soviético, explica o estudo "Geração Gulag", da Coda Story. E ele tem tido sucesso: metade dos jovens russos não ouviu falar do Grande Terror, os expurgos da era stalinista.

Em 2019, 70% dos russos aprovavam o papel de Stalin na história. O déficit de verdade sobre os gulags - campos de concentração soviéticos - e outras atrocidades em massa soviéticas tem sido justificado por séculos de carência de liberdade política e econômica. Essa aceitação do autoritarismo alimentou a guerra da Russa contra a sua ex-colônia, a Ucrânia.

(3) Evite narrativas e linguagem que criam falsas equivalências entre o agressor e o agredido

A cobertura mundial da guerra da Rússia contra a Ucrânia muitas vezes cria uma falsa equivalência entre os dois lados, argumenta Gumenyuk. Ela falha na maioria das vezes em reiterar que a Ucrânia é "uma nação pacífica, uma sociedade não-militarista que é forçada a ir atrás de armas para defender sua soberania".

Além disso, a guerra é referida como um "conflito" em 36% da cobertura global. Este termo perpetua a falsa noção de equivalência entre os dois lados. É mais preciso usar descritores que diferenciem entre o agressor e o agredido.

 

Table of news analysis

(4) Intensifique as perspectivas ucranianas sobre a guerra

Kariakina apontou o receio de que os russos, incluindo aqueles que fugiram do país, correspondam a uma fração desproporcional das vozes na narrativa sobre a guerra; e que a fração deles seja igual ou maior que a dos ucranianos em painéis internacionais.

Ao produzir uma matéria que comparava as táticas russas de guerra em três cidades na Ucrânia, Chechênia e Rússia, Kariakina ficou impressionada com a similaridade com que ucranianos e chechenos avaliam as narrativas construídas sobre as guerras da Rússia contra seus países. Com uma frustração perceptível, ela observa: "Os chechenos dizem que sua voz foi afogada pelos bondosos ativistas russos de direitos humanos e pelos jornalistas russos. São eles que contam as histórias de guerra dos chechenos, não os próprios chechenos."  

Nós recorremos a uma análise do GDELT para justapor as proporções de vozes russas e ucranianas no noticiário. Mais uma vez, os resultados me impressionaram: em 2022, referências a Putin eram quatro vezes mais comum que referências a Zelensky, e especialistas russos eram citados com duas vezes mais frequência que especialistas ucranianos.

 

Table of news analysis

 

Quando se trata do entendimento da guerra na Ucrânia, é preciso pender a proporção das vozes para aqueles que estão em campo. Jornalistas precisam ter cuidados para não tratar as vozes de imigrantes russos como intercambiáveis com as vozes de ucranianos; as perspectivas de cada um são muito diferentes, apesar de ambos considerarem Putin um inimigo. 

Eu percebo mais uma vez o quanto a contextualização é fundamental para entender a guerra na Ucrânia e o quão escasso ele é do noticiário atual. Também aprecio o valor de aplicar um ângulo multi-países ao analisar as guerras recentes da Rússia, e a importância de traçar paralelos entre a Rússia e o colonialismo de outros países ocidentais anterior ao século XX.

Sem esse contexto, há um perigo real de que a audiência global se dissocie de qualquer julgamento moral sobre quem está certo ou errado nessa guerra. É com essa apatia que a Rússia de Putin está contando. 


Foto por Daniele Franchi via Unsplash.