Como um dos mais antigos jornais independentes da Rússia resiste à repressão

May 31, 2022 em Liberdade de imprensa
акция в защиту журналиста Ивана Голунова

No fim de março, autoridades russas forçaram a Novaya Gazeta, um dos mais antigos e maiores jornais independentes da Rússia, a fechar. Um mês depois, homens fizeram um ataque contra o editor-chefe do jornal e vencedor do Nobel da Paz, Dmitry Muratov, encharcando-o de tinta misturada com acetona. "Um brinde aos nossos soldados", zombaram os homens desconhecidos.

Desde que o Novaya Gazeta foi lançado, em 1993, seis jornalistas que trabalhavam para o jornal foram mortos. Outros mais foram ameaçados. Após o ataque com tinta, Muratov foi hospitalizado com queimaduras nos olhos. A equipe do jornal investigou e publicou uma matéria sobre o incidente. 

Levando o trabalho adiante

Quando a Rússia deu início à invasão da Ucrânia no fim de fevereiro, a Novaya Gazeta não sabia como ia cobrir a guerra e seus desdobramentos. O primeiro passo dado pelo veículo foi criar uma linha do tempo dos acontecimentos. Dentro de alguns dias, porém, a Roskomnadzor, agência governamental que supervisiona as atividades da mídia na Rússia, emitiu um alerta para a redação: a invasão só podia ser caracterizada como uma "operação militar" — e de modo algum como "guerra".

Diante da escolha entre cumprir as exigências ou parar de cobrir a guerra de vez, a Novaya Gazeta decidiu se voltar para os leitores para pedir uma opinião. "A maioria dos leitores respondeu que era mais importante continuar com o trabalho, e portanto nós deveríamos cumprir os requerimentos", diz Serafim Romanov, editor-executivo da Novaya Gazeta em São Petersburgo. "Em apenas metade de uma noite, nós removemos do nosso site quase 300 matérias relacionadas aos eventos na Ucrânia."

Os advogados do jornal elaboraram diretrizes para a equipe editorial, explica Romanov. Por exemplo, ao informar sobre vítimas da guerra, as matérias também deveriam indicar o posicionamento oficial do Ministério da Defesa da Rússia. No geral, novas matérias deveriam incluir falas das autoridades russas que refletissem a narrativa do Kremlin.

"Toda matéria era revisada pelos nossos advogados antes da publicação e o sistema de gerenciamento de conteúdo do nosso site destacava nomes de organizações rotuladas como 'indesejáveis' pela Roskomnadzor — agentes estrangeiros e agências indesejáveis ou banidas — e a palavra 'guerra'", diz. "A Rússia também aprovou uma lei sobre a disseminação de informação 'falsa' sobre os militares russos. Ela impõe punições criminais de até 15 anos. Foi aí que percebemos que estávamos em uma nova realidade para o jornalismo."

A repressão da Rússia à mídia levou veículos independentes como o canal de TV Telekanal Dozhd a parar de fazer reportagens, assim como o Znak.com e o Ekho Moskvy, um dos veículos russos mais antigos. Paralelamente, a pressão sobre a Novaya Gazeta cresceu.

"No início, houve problemas com a distribuição da versão impressa. Em vez de receber novas edições, os leitores começaram a receber bilhetes escritos à mão em suas caixas de correio dizendo que a Novaya Gazeta havia sido banida. Eles eram assinados assim: 'Respeitosamente, o seu carteiro'. Quando as pessoas ligavam para a agência dos correios, falavam para elas que o jornal tinha sido fechado e não era mais possível fazer assinaturas. Foi assim por uma semana", explica Romanov, acrescentando que representantes dos correios negaram as acusações. Em reação, o veículo começou a vender jornais doi lado de fora da redação. 

Desde que começou a guerra em larga escala, a Novaya Gazeta sofreu quedas das visitas ao site, interrupções nos acessos, incluindo perda de conexão com o agregador de conteúdo Yandex Zen, e uma queda no ranqueamento nos sites de busca, segundo Romanov.

Em 22 de março, RIA Novosti, uma das maiores agências de notícias pró-governo na Rússia, publicou uma matéria afirmando que a Novaya Gazeta tinha sido notificada por não identificar uma organização como agente estrangeiro. O não cumprimento desta exigência por mais de uma vez em um ano pode resultar em revogação da licença do jornal para operar como mídia credenciada pela Justiça.

"Só conseguimos obter o documento com o texto da notificação alguns dias depois, com a ajuda de um advogado. Foi quando entendemos por qual motivo exatamente havíamos sido multados. Isso foi numa sexta-feira, e na segunda, a RIA Novosti escreveu que o jornal havia sido notificado pela segunda vez", diz Romanov. "Imediatamente avisamos que estávamos suspendendo as operações. Poderia ter sido muito pior, por exemplo, se tivéssemos sido incluídos no registro de organizações extremistas ou indesejáveis. Imagine se os jornalistas da Novaya Gazeta fossem igualados aos membros do Talibã."   

No início de maio, jornalistas da Novaya Gazeta exilados lançaram uma nova publicação, NovayaGazeta.Europe, na Letônia, para continuar informando do exterior. Enquanto isso, repórteres do jornal que continuam na Rússia estão se preparando para voltar a trabalhar quando a situação for resolvida e estiver em uma condição aceitável, explica Romanov.

"Havia esperança de uma retirada das tropas, mas você viu as fotos de Bucha", diz Romanov, se referindo às fotos de civis mortos por forças russas em Bucha, cidade da Ucrânia perto de Kiev. Condenando as tentativas de muitos veículos russos e de perfis nas redes sociais pró-Rússia de lançarem dúvida sobre a autenticidade das imagens, Romanov acrescenta que "eu realmente não entendo qual tipo de evidência é necessária, porque você pode chamar qualquer foto ou vídeo de falso [se quiser] — e isso pode resultar na impunidade daqueles que praticaram esses atos."

Eu conversei com Romanov sobre como o jornalismo na Rússia mudou desde que a guerra começou, como a Novaya Gazeta tem lidado com a repressão à mídia independente no país e o que esperar daqui pra frente.   

Há liberdade de expressão quando se trata da guerra na Ucrânia?

A guerra na Ucrânia foi o ponto a partir do qual as autoridades finalmente pararam de fingir que não havia censura no país.

[O governo] tenta sustentar essa imagem [da imprensa livre] no âmbito internacional. Mas depois de 24 de fevereiro, começou a bloquear sites de notícias e emitir notificações para jornalistas sem qualquer fundamentação.

Agora chegamos ao ponto em que dizer a verdade sobre a guerra é simplesmente impossível. Se você está em um veículo oficialmente registrado na Rússia, não há forma "legal" de dar essa informação aos seus leitores e audiência. Por isso, chegou a hora do jornalismo alternativo e fora do país. 

Ninguém no Ministério da Defesa da Rússia vai dar credencial para a mídia independente. Sem credenciamento, nenhum veículo pode assegurar a segurança de seus jornalistas. E aqueles que foram [para a Ucrânia] – Oksana Baulina, [por exemplo], a jornalista do The Insider que foi morta enquanto trabalhava, era muito experiente.

Quais jornalistas russos você recomenda seguir?

O jornalismo independente está pausado, mas muitos veículos estão em plena atividade mesmo tendo sido bloqueados no país. Muitos canais no Telegram e no YouTube também surgiram.

Por exemplo, o ex-chefe do Telekanal Dozhd, Tikhon Dziadko, e sua esposa Ekaterina Kotrikadz, têm seu próprio canal no YouTube, onde publicaram uma entrevista sensacional com [o presidente ucraniano Volodymur] Zelensky.

Anastasia Chumakova lançou seu próprio veículo, Astra, dedicado a investigar crimes de guerra na Ucrânia, depois de ter sido demitida da RTVI. A jornalista Farida Rustamova criou o Faridaily. Ela era uma observadora política no State Duma e agora tenta entender o que os políticos estão planejando e quando a guerra vai acabar.

Muitas pessoas na Rússia parecem não se afetar pelo fato de que há uma guerra no momento e que muitos veículos de imprensa estão bloqueados. Como você mantém seu propósito nesse contexto?  

Há uma discussão séria sobre isso entre os profissionais da área. As pessoas estão com burnout e totalmente desiludidas com a profissão. Talentos do jornalismo estão surgindo nesse cenário – mas, ainda assim, você se sente impotente.

Alguns aconselham todo mundo a deixar a profissão. Outros dizem: 'não, vou ser o último a apagar a luz, mesmo que todos vão embora'. Falando por mim, não consigo deixar de lado a sensação de que tudo isso é um filme. Talvez eu esteja subestimando os riscos pessoais e o fato de ter perdido meu emprego.

Como os jornalistas podem atravessar esse momento difícil?

Pense em como liderar o jornalismo do futuro. O jornalismo russo está tendo que passar por uma reestruturação radical.

Considere como seguir na profissão, ser mais independente, criar canais para trabalhar com os leitores e como fazer isso fora da jurisdição russa.

Imagem principal: Serafim Romanov em uma campanha em defesa do jornalista Ivan Golunov, em São Petersburgo, em junho de 2019. Foto por Georgy Markov. 


Este texto foi originalmente publicado no site russo da IJNet.