O que jornalistas devem saber ao cobrir antissemitismo

Dec 8, 2022 em Temas especializados
Star of David

O antissemitismo está crescendo nos Estados Unidos e no mundo todo. Em nenhum outro lugar isso foi mais enfatizado do que pelas recentes falas desequilibras, xenofóbicas e antissemitas de Ye (anteriormente conhecido como Kanye West), que lhe custaram bilhões de dólares em parcerias e muita boa vontade.  

Também em outubro, Kyrie Iriving, jogador da NBA pelo Brooklyn Nets, compartilhou no Twitter um link para um filme antissemita. Depois dele se desculpar, os Nets suspenderam Irving do time, e patrocinadores logo seguiram o exemplo (desde então, Irving pediu desculpas e voltou a jogar pelos Nets). 

Mais recentemente, em uma entrevista de Ye com o teórico da conspiração Alex Jones no Infowars, o músico caiu em desgraça ao elogiar Hitler.    

Os incidentes revigoraram antissemitas no país e no mundo. Eles são mais encorajados ainda pela aquisição do Twitter por Elon Musk — uma jogada que motivou comportamento xenofóbico de pessoas poderosas, inclusive líderes eleitos.

O contexto histórico não pode ser ignorado. O povo judeu tem sido alvo frequente e recorrente de perseguição ao longo da história, incluindo, mas não limitado à perseguição durante a Inquisição Espanhola, genocídios no antigo Império Russo e, menos de um século atrás, o genocídio do Holocausto da Alemanha Nazista, que resultou no assassinato brutal de seis milhões de judeus. De forma preocupante, principalmente nas gerações mais jovens, poucas pessoas sabem dessa história.

Junto com o antissemitismo nas manchetes atuais, crimes de ódio contra judeus nos Estados Unidos também estão crescendo.

Tudo isso levanta uma questão triste porém oportuna: como nós, enquanto jornalistas, cobrimos o antissemitismo? 

Faca de dois gumes

Jornalistas enfrentam uma faca de dois gumes quando se trata da cobertura do antissemitismo. A pauta pode ser especialmente desafiadora quando envolve as palavras ou ações de uma figura pública notória.

"Ignorá-los não é o mesmo que ignorar uma pessoa odiosa comum", diz Jodi Rudoren, editora chefe do Forward. Ao mesmo tempo, jornalistas não querem dar palco para visões antissemitas desnecessariamente.

"Você não quer mesmo que a mensagem seja amplificada, com o caso do Kanye West [Ye] você tem essa situação complicada porque a plataforma que ele tem é maior do que a maioria das plataformas de mídia em termos dos seguidores dele", diz Rudoren. "A ideia de que as pessoas não vão ouvir o que ele tem a dizer se nós não dermos espaço a ele não é realmente verdade."

Em um exemplo recente, Chris Cuomo, demitido pela CNN no ano passado por ajudar seu irmão, o ex-governador de Nova York Andrew Cuomo, a lidar com denúncias de assédio sexual, entrevistou Ye em seu novo programa Newsnation. Infelizmente, ele permitiu que Ye partisse para um falatório desequilibrado.

A intenção de ódio por trás das alegações de Ye eram evidentes desde o princípio. Isso levanta questões para Cuomo e sua abordagem, e para qualquer outro jornalista que venha a buscar imitá-lo:

  • Qual o valor que se acrescenta ao levar Ye ao vivo na TV para que ele explique suas crenças? 
  • É mais efetivo — e responsável — cobrir o caso sem a contribuição de Ye, dado o precedente que ele estabeleceu com suas entrevistas ao vivo? 

Conversar com pessoas que têm crenças alimentadas por conspirações pode ajudar a embasar o processo de reportagem. Porém, obter contexto é uma coisa — dar palco é outra. "O que você faz quando a pessoa falar essas coisas? Como você, enquanto Chris Cuomo, ou alguém como ele, responsabiliza [o Ye] — como você chama atenção no momento e depois em publicações escritas?", pergunta Rudoren.

O mesmo vale quando o antissemitismo é mais sutil. "Às vezes há mais nuance e é preciso algum discernimento e rigor no processo de reportagem para entender por que alguém bateu nessa velha tecla", diz Rudoren.

Por exemplo, termos como "globalista" podem não ser tão obviamente antissemitas nem usados sempre de um modo antissemita; explicar porque ele é frequentemente usado como um código por antissemitas requer mais nuance do que alguém precisaria para explicar, digamos, uma saudação nazista.

O mesmo pode ser dito para a suposta "Guerra ao Natal", em torno da qual empresas como a Fox News construíram uma marca. A "guerra" sugere que a celebração padrão de dezembro é o Natal, mesmo para quem não é cristão. Os proponentes encorajam desejos de "Feliz Natal", por exemplo, em vez do mais inclusivo "Boas Festas". É uma microagressão, embora não seja necessariamente maliciosa.

Israel e judaísmo

É também fundamental entender que há uma distinção entre judaísmo e Israel. O judaísmo é uma religião; Israel é um país. Sugerir que todos os judeus devem compartilhar da mesma opinião sobre Israel ou qualquer outro país é incorreto. Os dois são comumente confundidos em linguagem antissemita.

Veículos jornalísticos não devem permitir afirmações generalizantes como as que dizem que todo o povo judeu apoia ações do governo israelita, por exemplo as relacionadas à ocupação do território palestino pelo país. 

Um exemplo disso, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump disse em sua rede social Truth Social que "os judeus dos Estados Unidos têm que organizar e valorizar o que têm em Israel".

Jornalistas devem destacar que as visões entre os judeus a respeito do conflito Israel-Palestina variam significativamente. Eles devem ainda combater alegações de "dupla fidelidade" ao estado de Israel, que sugerem que os judeus são de certa forma desleais ou não patriotas quando discordam das ações de Israel. 

Comparações históricas

Fornecer o contexto histórico pode ser importante dependendo da natureza da sua reportagem. Porém, jornalistas devem sempre avaliar cuidadosamente qualquer comparação com eventos históricos aos quais venham a se referir.

Comparações feitas com a Alemanha Nazista de Hitler, por exemplo, não devem ser usadas levianamente. O genocídio brutal de milhões de pessoas e os eventos que levaram a ele não são o mesmo que a obrigatoriedade de tomar a vacina da COVID-19 que salva vidas, como certos políticos extremistas nos Estados Unidos e fora dele afirmaram, e que foram promovidos em veículos com inclinação conservadora.

"O horror do Holocausto é rebaixado pelo uso de analogias para comparações desproporcionais e/ou finalidades políticas", diz Carla Hill, diretora de pesquisa investigativa no Centro sobre Extremismo da Liga Antidifamação

Tais comparações devem ser rechaçadas rápida e categoricamente. "As pessoas tentadas a usar essas analogias para provar um ponto de vista ou vencer um debate devem considerar as sensibilidades da comunidade judaica e o trauma histórico que eles vivenciaram", acrescenta Hill.


Foto por David Holifield via Unsplash.