A liberdade de imprensa na Turquia após os julgamentos de Gezi Park

Jun 24, 2022 em Liberdade de imprensa
Turkish flag

Em um dos julgamentos mais espetacularizados, acompanhados de perto e amplamente observados da Turquia, no dia 25 de abril a 13ª Suprema Corte Criminal de Istambul condenou o empreśario e filantropo Osman Kavala à prisão perpétua, e outros sete réus a 18 anos de prisão. Mesmo Kavala estando preso há quase cinco anos, o veredito chocou seus apoiadores. Detido desde outubro de 2017, a previsão preventiva de Kavala atingiu um marco em dezembro de 2019, quando a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que o caso tinha motivações políticas e exigiu a libertação de Kavala.

Relatores do Conselho da Europa estão preparando processos por infração contra a Turquia, um de seus estados-membros fundadores desde 1950, em uma reviravolta nas relações entre a Europa e a Turquia. Mesmo com o Conselho preparando sanções sem precedentes, aplicadas uma única vez contra o Azerbaijão, a desinformação da mídia pró-governo na Turquia e a censura de jornalistas se intensificaram.   

A escalada da desinformação

“Antes da prisão de Kavala, em outubro de 2017, a mídia pró-governo já dava sinais do que estava por vir. Eles criaram suspeitas em meio ao público sobre as atividades de Kavala”, diz a jornalista Banu Tuna, que representa a organização turca de direitos humanos Hafiza Merkezi. “Mesmo depois da condenação, as campanhas de perseguição e calúnia da mídia pró-governo continuaram. Os rótulos mais comuns usados para falar de Kavala são ‘Soros Vermelho’, ‘alimentado por Soros’, ‘patrocinador de Gezi’, ‘fantoche ocidental’ [e] 'financiador do terror’.

Enquanto isso, a Corte Europeia de Direitos Humanos descobriu que evidências de registros telefônicos e afiliação a organizações no caso de Kavala são escassas e ilegais. As  supostas evidências são usadas pelo governo para alegar que ele tentou derrubar o governo durante as manifestações de Gezi Park em 2013 ou durante a tentativa de golpe em 2016

A Anistia Internacional chamou o caso de “paródia de justiça”. Em sua declaração final, em abril, Kavala descreveu a decisão como um “assassinato judicial”.

“O julgamento de Gezi é importante no sentido de que mostra o aprofundamento da polarização social na Turquia. E elementos criminosos são incentivados por narrativas da mídia pró-governo”, diz a jornalista Şebnem Arsu, que trabalha na Turquia desde os anos 1990. 

“Temos a tendência de focar nos nomes de maior destaque. Há tantos jornalistas que são legalmente condenados ou perseguidos que nós não vemos. Na Anatólia, há pessoas que são assassinadas. Por mais severa que seja a punição legal enfrentada por jornalistas, há uma punição que eles também estão sofrendo nas ruas”, diz.

Cobrindo o veredicto

Jornalistas turcos progressistas cobrem o caso de Kavala contra o governo da Turquia com cautela, enquanto seus pares pró-governo transformam suposições em manchetes.

Desde 2017, um grupo regular de repórteres internacionais compareceu às audiências de Kavala, da BBC ao The New York Times, trabalhando ao lado de jornalistas turcos, muitos dos quais representam a maioria pró-governo. O caso Kavala é apenas uma parte dos julgamentos de Gezi, com réus incluindo os jornalistas Ciğdem Mater e Can Dündar. Apesar de sua baixa circulação, os meios de comunicação locais e independentes encontram-se sob a constante ameaça de multas arbitrárias por parte do governo.

“Na Turquia, a maior fonte de informação é a televisão. O conselho de rádio e televisão que regula a transmissão de TV está constantemente multando a mídia independente. Não há mecanismos para verificar como essas autoridades funcionam. Eles estão escolhendo a dedo para punir veículos independentes por qualquer tipo de cobertura crítica. Por causa disso, os [jornalistas] constantemente se autocensuram”, diz Renan Akyavas, coordenadora do programa da Turquia para o International Press Institute.

Akyavas interveio para trabalhar nos julgamentos de Gezi em resposta à acusação feita contra Dündar. Uma figura de destaque no jornalismo turco, agora exilado na Alemanha, Dündar já passou 92 dias de prisão, sofreu uma tentativa de assassinato e está enfrentando a prisão perpétua por cobrir o tráfico de armas da Turquia na Guerra Civil da Síria.

Carolina Stockford, consultora turca do PEN Norway e líder do projeto Turkey Indictment, diz que os julgamentos de Gezi Park são “um caso importante sobre a liberdade de expressão na Turquia”.

“Este é o pior julgamento que já vi, e já estive em muitos julgamentos de jornalistas curdos e turcos”, diz. Os julgamentos de Gezi Park pertencem, portanto, a um padrão amplo de censura à imprensa. “Com o fechamento de 53 jornais em 2018, as autoridades efetivamente acabaram com a liberdade de imprensa na Turquia”, diz Stockford.

No entanto, a cobertura da mídia independente local continua, bravamente, diante de ondas de intimidação e medo.

Censura dos julgamentos de Gezi Park

Durante os julgamentos de Gezi, organizações independentes, como o Conselho da Europa, provaram que 17 réus eram inocentes. O Conselho está agindo para mostrar que a Turquia desrespeitou o artigo 18 da Convenção Européia de Direitos Humanos, que proíbe o uso do poder político para manipular instituições civis. Paralelamente, emissoras de televisão turcas foram multadas pelo governo por cobrir o caso, incluindo a HalkTV, Flashaber e outras.

“Quatro canais críticos de TV foram multados pelo regulador de mídia RTÜK porque transmitiram as declarações de dois deputados de partidos da oposição”, diz Özgür Öğret, representante da Turquia no Comitê de Proteção dos Jornalistas. “Eles criticaram o veredito. Mesmo para a Turquia isso é um novo ponto baixo, porque não foi um jornalista criticando o veredito, não foi um editorial. Eles estavam apenas transmitindo o que um deputado estava dizendo.”

Em um outro caso, depois de cobrir os julgamentos de Gezi, o jornalista turco Ismail Saymaz foi investigado por terrorismo pelas autoridades turcas. Isso ocorreu depois que Saymaz publicou matérias que mostravam que um dos juízes dos julgamentos de Gezi era um candidato a parlamentar em potencial para o partido no poder da Turquia, e que a esposa do juiz declarou estar associada à FETÖ, que o governo do partido AKP culpa por encenar a tentativa de golpe em 2016.

“Esse deveria ser o trabalho do jornalista. Um jornalista só precisava pesquisar esse cara no Google para descobrir que ele era um candidato a parlamentar em potencial para o partido no poder”, diz Mümtaz Murat Kök, coordenador de projetos e comunicações da Media and Law Studies Association.

O caso de Kavala e os julgamentos de Gezi, em geral, são um exemplo do grau de política autoritária que está abalando o cerne da Turquia. Tal desprezo pela liberdade de expressão é uma demonstração do estrangulamento sofrido pelos jornalistas turcos, em que a prisão ou ameaças de prisão são usadas para silenciar reportagens críticas.

“De acordo com nossas listas, há pelo menos 40 jornalistas presos agora na Turquia, então isso cria esse efeito assustador, que influencia a maneira como os jornalistas fazem seu trabalho, porque há jornalistas muito impressionantes na Turquia”, diz Kök.


Foto por Badar ul islam Majid no Unsplash.