Na Coreia do Sul, o trabalho de encontrar fatos não está mais limitado ao domínio dos jornalistas e verificadores de fatos. Os tribunais do país atualmente estão inundados de processos que buscam estabelecer a verdade por meio de vereditos judiciais, em vez de contar com o jornalismo ou o debate público.
Essa tendência em ascensão, chamada de "judicialização dos fatos", foi o foco de discussões na conferência Global Fact 10, realizada recentemente pela International Fact-Checking Network em Seoul.
Durante uma sessão, especialistas da Coreia do Sul esclareceram esse fenômeno e suas potenciais implicações para o futuro da verificação de fatos. Eles expressaram a preocupação de que a tendência pode extrapolar o país, alterando o cenário da checagem de fatos e moldando a forma como a verdade é estabelecida no mundo.
Em um auditório lotado com mais de 500 especialistas antidesinformação de vários países, verificadores de fatos sul-coreanos compartilharam suas experiências com cautela, aderindo a uma apresentação roteirizada e pré-aprovada por todos para evitar quaisquer repercussões políticas ou legais. A audiência – pesquisadores, professores, membros de segurança de empresas de tecnologia, dentre outros – ficou surpresa ao ver os participantes lendo em seus iPads como uma medida de precaução.
Décima maior economia do mundo com desenvolvimento social e tecnológico avançado, a Coreia do Sul foi lar de um clima político altamente polarizado durante a eleição presidencial do país em 2022. O presidente Yoon Suk Yeol, do conservador Partido do Poder Popular, venceu por uma margem estreita de 0,73% dos votos. Desde que venceu, Yeol e seus apoiadores atacam constantemente os verificadores de fatos, rotulando-os como tendenciosos e apoiadores de ideologias liberais — uma narrativa falsa que também encontra eco no Ocidente.
De acordo com verificadores de fatos do país, o governo do presidente usa frequentemente coletivas de imprensa para criticar e atacar o trabalho deles. Políticos conservadores usam as redes sociais, postagens em blogs e entrevista para enfraquecer os esforços dos verificadores. Recentemente, apoiadores financeiros de iniciativas de checagem de fatos sofreram pressão para que fosse reduzido o financiamento a esses projetos, como o portal Naver.
A SNU FactCheck, uma coalização sem fins lucrativos que agrega 32 veículos jornalísticos e várias universidades da Coreia do Sul, tem sido um alvo primário. A coalização já enfrentou ações na justiça em pelo menos duas ocasiões: um julgamento civil e outro criminal de processos abertos por apoiadores do presidente Yeol. Apesar de ter vencido ambos os casos, a organização não descarta potenciais futuros desafios legais.
Durante a conferência, Wonsuk Choi, CEO e pesquisador da Media Information Literacy Open Network (MILON), mencionou o trabalho de sua equipe durante o ano anterior à campanha presidencial para ilustrar a situação atual. Eles decidiram verificar uma quantidade igual de afirmações dos candidatos conservadores e liberais, uma abordagem que não satisfez nem os verificadores de fatos nem os políticos.
"Algumas das afirmações não necessitavam de verificação, pois eram evidentemente verdade", disse em sua apresentação. "Mas manter um número igual de checagens para cada lado foi a única solução que conseguimos inventar para mitigar críticas. A Coreia do Sul está presa em um ambiente severo de polarização e judicialização políticas."
Expressando frustração, EunRyung Chong, diretora da SNU FackChech, lamentou a situação durante uma breve pausa depois do debate no painel. "Estou muito cansada desse estado de coisas. A política consome a maior parte do meu tempo atualmente", disse. "No momento, o Congresso da Coreia está avaliando 27 projetos de lei com o objetivo de estabelecer leis antidesinformação, algumas das quais ameaçam a verificação de fatos ao enquadrá-la como censura."
Embora o liberal Partido Democrático da Coreia controle o parlamento no momento, atuando como uma barreira contra esforços conservadores para aprovar essa legislação, espera-se que as eleições parlamentares de abril de 2024 tragam mudanças significativas para a formação do congresso. Isso impõe um desafio em potencial para o futuro dos verificadores de fatos.
Complicando ainda mais as coisas, os sul-coreanos contam muito com o YouTube como sua plataforma preferida para consumo de notícias. Um estudo recente revelou que 81% da população consome informação no YouTube, gastando em média uma hora por dia na plataforma. O YouTube é a principal fonte de notícias para 31% da população. Mesmo assim, os verificadores de fatos observam que a língua coreana carece de ferramentas robustas para monitorar desinformação em formato audiovisual.
"Os coreanos cada vez mais obtêm notícias de canais do YouTube criados por antigos jornalistas que expressam abertamente suas tendências políticas, bem como por analistas políticos emergentes que perceberam que podem manipular a opinião pública e conquistar uma significativa influência online", explicou Chong. "Nossa próxima eleição será desafiadora e complexa, sem dúvidas."
O mundo deve ficar de olho em Seul. Com um olhar bem atento.
Foto por Daniel Bernard via Unsplash.