Governos autoritários usam guerra jurídica para punir jornalistas

May 11, 2023 em Liberdade de imprensa
A gavel.

Na Libéria, país com uma longa e trágica história de violência contra qualquer pessoa que desafia o poder, as armas não silenciaram o jornalista Rodney Sieh. Mas os tribunais, sim.

Sieh foi um dos quatro jornalistas e especialistas em Direito que participaram de um painel do Dia Mundial de Liberdade de Imprensa no Comitê de Proteção aos Jornalistas em Nova York sobre o crescente uso da "guerra jurídica" para punir jornalistas e manter a verdade escondida. Moderado pela vice-presidente de pesquisa global do ICFJ Julie Posetti, o painel explorou como governos estão se tornando ainda mais sofisticados no uso de aspectos da lei que aparentemente não têm nada a ver com jornalismo – questões tributárias, financiamento estrangeiro, até proteção às mulheres – contra jornalistas.

 

ICFJ's Julie Posetti moderates a World Press Freedom Day panel on "lawfare."
Julie Posetti, do ICFJ, modera painel do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa sobre "guerra jurídica". Da esquerda para a direita: Caoilfhionn Gallagher, José Zamora, Posetti, Rodney Sieh e Carolina Henriquez-Schmitz.

"Não são só os jornalistas que pagam individualmente o preço da perseguição direcionada", disse Posetti. "Quando editores e publicações viram alvo, organizações jornalísticas inteiras entram em perigo. Veículos são fechados e funcionários das redações ficam desempregados, comprometendo o jornalismo independente em democracias oscilantes e em autocracias em desenvolvimento."

Sieh foi perseguido porque o veículo que ele fundou, FrontPage Africa, publicou um relatório do próprio governo sobre como um ministro havia usado inadequadamente recursos financeiros de um doador. O ministro foi exonerado e culpou Sieh. Um sistema de justiça corrupto (Sieh diz que viu o ministro e seu advogado se cumprimentando fora do gabinete do juiz antes do início do julgamento) condenou Sieh a 5.000 anos na prisão, e fechou o FrontPage Africa.

Na Guatemala, o editor e vencedor do prêmio ICFJ Knight de Jornalismo Internacional José Rubén Zamora está preso há mais de nove meses por acusações falsas de lavagem de dinheiro. Seu filho, o painelista José Zamora, disse que os governos descobriram que ameaçar jornalistas com violência (como aconteceu repetidamente com seu pai) ou tentar enfraquecê-los por meio de campanhas de difamação não eram as melhores táticas. Elas tornavam os jornalistas heróis. 

 

"Eles descobriram que a ferramenta mais eficaz que há no manual de repressão do jornalismo é a lei criminal", diz Zamora, chefe de comunicação e gerente de impacto no Exile Content Studio. "É fácil fabricar um caso dizendo que um jornalista fez lavagem de dinheiro e prendê-lo."

Essa estratégia foi uma das muitas empregadas contra o pai de Zamora, que sofreu 140 processos, bem como auditorias fiscais e campanhas para pressionar empresas a pararem de anunciar no jornal dele, o elPeriódico. Uma parlamentar chegou a usar a lei antifeminicídio do país para abrir processos alegando que Zamora e outros jornalistas a estavam perseguindo por causa de seu gênero, disse Zamora.

Logo após a prisão de Zamora, o elPeriódico parou com a edição impressa e opera online como uma pequena fração da sua equipe anterior, parte da qual continua a ser perseguida. O objetivo do governo, disse Zamora, é triplo: "punir meu pai diretamente, fechar o jornal e passar a mensagem a todos os jornalistas na Guatemala de que o jornalismo é um crime."

Caoilfhionn Gallagher, advogada irlandesa que defende muitos jornalistas e veículos de destaque que são perseguidos, destacou quatro tendências crescentes empregadas por governos repressores:

  • O uso crescente da "guerra jurídica", transformando a lei em arma para perseguir jornalistas e o jornalismo. Ela observou que a jornalista Daphne Caruana Galizia, assassinada em Malta, enfrentava 46 processos quando foi morta, e estes processos permanecem ativos, tendo agora os filhos dela como réus;
  • A perseguição direta de veículos, como elPeriódico e FrontPage Africa;
  • A perseguição de jornalistas não só pelo seu trabalho, mas por seu caráter. Eles estão sendo retratados como "trapaceiros em quem não se pode confiar";
  • A ampliação da perseguição para além das fronteiras nacionais. "O Irã está usando os braços do Estado para perseguir jornalistas nos Estados Unidos, no Reino Unido e no mundo", ela observou.

Posetti pediu a Carolina Henriquez-Schmitz, diretora do programa TrustLaw da Thomson Reuters Foundation, para falar sobre táticas para combater essas tendências. Ela descreveu passos importantes que jornalistas e organizações que os apoiam devem dar:

  • Expanda as proteções legais para jornalistas.  Esse apoio não deve ocorrer somente depois de o jornalista ser processado ou preso, ela disse. Advogados também precisam ajudar os veículos a evitarem problemas legais analisando o conteúdo antes da publicação para minimizar os riscos. (O projeto Reporters Shield, lançado durante o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa em Nova York, é uma nova fonte de apoio legal);
     
  • Amplie a capacitação dos advogados. Eles devem ser especialistas não somente em áreas óbvias, como legislação sobre difamação, como também crimes financeiros, crimes cibernéticos e outras áreas que não são associadas ao jornalismo de forma óbvia;
     
  • Use o litígio estratégico para estabelecer precedentes mais fortes. Ela citou uma "lei antiLGBTQ+" debatida atualmente em Uganda. Embora pareça sem relação com a liberdade de imprensa, ela disse, versões do projeto de lei podem ser usadas para processar jornalistas por "promoção" da homossexualidade;
     
  • Confronte os abusadores. Governos democráticos e organizações intergovernamentais precisam "desafiar os abusadores. Precisamos que as pessoas estejam cientes dessa ameaça. Precisamos empoderar eleitores para que entendam que essa é uma questão crítica que afeta a vida cotidiana deles".

No caso de Sieh, confrontar os abusadores foi exatamente o que lhe rendeu liberdade. A prisão dele foi amplamente condenada internacionalmente, e ele diz que a pressão fez com o que o então presidente da Libéria ordenasse o Ministro da Justiça a libertá-lo. O FrontPage Africa voltou a funcionar.

"Mas eu ainda paguei um preço. Toda vez que solicito um visto, sou um criminoso. Se você buscar meu nome no Google, eu sou um criminoso", ele diz. Ele acrescenta que seu caso "mostra que o poder da mídia é forte, mas ao mesmo tempo essas leis são feitas para nos manter com medo. As armas estão em silêncio agora. Eles usam o sistema judiciário para perseguir o jornalismo."


Este artigo foi originalmente publicado pelo Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ na sigla em inglês), organização da qual a IJNet faz parte, e republicado pela IJNet com permissão.

José Zamora é membro do conselho administrativo do ICFJ.

Foto principal por Wesley Tingey via Unsplash.