"Jornalismo humano": como comunidades enfrentam problemas sociais urgentes

por Silvia Higuera
Aug 3, 2023 em Jornalismo colaborativo
People planting in a garden

Imagine o seguinte: um grupo de pescadores ilegais em uma província filipina foi transformado em "guardião do mar". Uma comunidade na Índia que planta 111 árvores a cada menina que nasce em um ritual que reduziu o número de casamentos infantis e também as enchentes. Mulheres do povo Nunavut, no Canadá, que estão encarregadas de gerenciar o parto e os cuidados de novas mães, ou a construção de uma comunidade em Cuba para oferecer proteção a sobreviventes de violência sexual.

Estes foram os tópicos de algumas das matérias que fizeram parte da Edição Global 2023 da Rede de Jornalismo Humano, iniciativa criada como uma plataforma que compartilha reportagens que "retratam como pessoas e comunidades enfrentam nossos problemas sociais mais urgentes".

Em meio a um mundo cada vez mais caótico que inevitavelmente está refletido no noticiário diário e que levou a outros fenômenos como a "abstinência de notícias", esses tipos de matérias parecem ser uma brisa refrescante, uma pausa na "negatividade extrema" da mídia.

Essa é a convicção do jornalista argentino Chani Guyot, fundador da Rede de Jornalismo Humano [e bolsista Knight pelo Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ na sigla em inglês)], para quem melhorar o alcance dessas matérias — que ele chama de "jornalismo humano" — se tornou uma missão profissional.

 

TeamA equipe da Rede de Jornalismo Humano. Em sentido horário, a partir do canto superior esquerdo: Lucia Cholakian Herrera (editora), Paula Felgueras (tradutora), Natalia Zuluaga (coordenadora) e Chani Guyot (diretor)

 

"A mídia tem a responsabilidade de mostrar os problemas da sociedade em seu papel de 'vigilante', mas nós acreditamos que ela também tem a responsabilidade de mostrar histórias das pessoas e organizações que estão em busca de resolver esses problemas, porque essas histórias existem e são frequentemente sub-representadas", disse à LatAm Journalism Review (LJR) Guyot, que também é fundador do veículo digital Red/Acción.

A Rede de Jornalismo Humano começou em 2021 como um projeto piloto, de acordo com Guyot. Naquela época, a plataforma era voltada para a mídia aliada ou parceiros na América Latina. Para aquela edição latino-americana, oito veículos participaram e compartilharam cinco matérias cada um, com um total de 40 matérias. Além de compartilhar suas matérias, as mídias parceiras eram livres para republicar os textos compartilhados pelos outros veículos.

Depois de um hiato em 2022, no fim daquele ano e vendo o impacto que havia gerado com o piloto, a equipe da rede pensou em fazer uma edição global na qual veículos em inglês e espanhol participariam. Com o apoio do ICFJ, eles começaram a convocatória para inscrições em fevereiro de 2023. Embora tenham planejado inicialmente contar com 20 veículos participantes, 10 em cada língua, eles conseguiram reunir 14.

Guyot destacou a diversidade geográfica e temática como um dos aspectos dessa edição. Da América Latina, participaram Mi Voz (Chile), El Toque (Cuba), GK (Equador), Convoca (Peru), e Río Negro e Red/Accción (Argentina). Também participaram Globe e Mail (Canadá), elDiario.es (Espanha), San Francisco Chronicle (Estados Unidos), Rappler (Filipinas), The Quint (Índia), The Irish News (Irlanda), Reasons to be Cheerful World (Reino Unido) e Daily Maverick (África do Sul).

"Isso é superinteressante porque os leitores de cada um desses veículos têm realmente a possibilidade de juntar-se a essas matérias que são desenvolvidas localmente", disse Guyot. "E outra coisa interessante pra mim em relação a essa edição da Rede é que muitos dos tópicos com os quais lidamos têm a ver com desafios sociais que enfrentamos como sociedade e como mundo."

 

MapVeículos que participaram da Edição Global 2023 da Rede de Jornalismo Humano  (Imagem: Divulgação Red/Acción)

 

Nesse sentido, a crise climática foi um tópico presente nessa edição, mas houve matérias focadas em inclusão, principalmente de gênero, ou sobre líderes comunitários. Matérias sobre educação, saúde, migração, arte, inovação social, pobreza e sustentabilidade fizeram parte da edição.

"Quando falamos sobre jornalismo humano, o que fazemos é ter uma definição muito precisa do tipo de jornalismo que buscamos compartilhar. É jornalismo feito na rua, ou seja, que é reportado. São histórias de pessoas ou organizações que estão tentando resolver desafios sociais, basicamente", disse Guyot. "É uma definição similar à do jornalismo de soluções, mas um pouco mais ampla, porque em alguns casos podemos compartilhar soluções que estão a caminho ou problemas que não são tão conhecidos e relatados."

Além dessa abordagem, Guyot aponta que a Rede sempre busca pelo mais alto padrão no jornalismo — excelência na reportagem e na escrita. Mas há também um componente vital que agrega valor à Rede: o processo de edição e tradução feito por duas jornalistas da Red/Acción, força motriz da Rede.

Editar, conforme explica Guyot, é um trabalho duplo. Além da edição que cada veículo faz ao entregar uma matéria, a equipe da Rede precisa fazer uma edição no idioma original, dando um toque mais global aos textos. Por exemplo, explicar termos, lugares ou costumes que são "óbvios" para uma audiência local, mas que podem não fazer sentido para uma audiência internacional. Uma vez finalizada essa edição, a matéria é traduzida para o outro idioma (espanhol ou inglês) e há uma segunda edição da tradução.

"É um processo no qual colocamos muita, muita ênfase porque o valor da Rede depende muito, fundamentalmente, da qualidade das matérias compartilhadas por meio dela", disse Guyot.

Para ele, o maior benefício da Rede é que os veículos participantes poem expandir as audiências que alcançam com suas matérias.

"Nós queremos que esse jornalismo de qualidade que é praticado no mundo chegue a novas audiências", explicou o diretor. "E essas matérias, que são locais ou regionais, por causa da forma como são produzidas e editadas, em algum ponto também são, eu diria, universais. E a partir daí elas podem ter relevância para veículos de outras latitudes."

 

ScreenshotCaptura de tela da plataforma Rede de Jornalismo Humano. A reportagem do San Francisco Chronicle foi a mais republicada até o momento

 

A experiência com essas duas edições mostrou que este é o caso de fato. O exemplo dessa edição global foi muito mais claro já que cada matéria tem uma tag PixelPing que permite rastrear o alcance da republicação: eles sabem quantos veículos republicaram quais matérias e qual o alcance (visualização de páginas). Guyot esclarece enfaticamente que eles não coletam informações sobre a audiência, somente o alcance da matéria.

De acordo com os registros da Rede compartilhados com a LJR, a matéria mais republicada é uma em espanhol do San Francisco Chronicle intitulada "Bairro de San Francisco tem progresso notável com os sem-teto, mas há uma grande desvantagem". Já a matéria do El Toque "Programa de mentoria impulsiona mulheres cubanas nas indústrias criativas" conseguiu multiplicar 15 vezes o seu alcance, conforme estimativas dos registros da Rede.

Agora, depois de finalizar essa experiência, Guyot e sua equipe planejam uma segunda edição global a ser lançada no fim de 2023. Também voltada para veículos que publicam em espanhol e inglês, essa edição pretende ter mais veículos e seguir aprendendo.

"Por trás da Rede de Jornalismo Humano está uma ideia muito importante em relação ao valor da colaboração extrema [...] tudo o que temos a ganhar nessa indústria em termos de colaboração em um contexto extremamente desafiador por causa da perda de confiança dos leitores, por causa da forma como o negócio está erodindo e por aí vai", disse Guyot. "E embora compartilhar conteúdo pareça uma colaboração simples, é extrema porque na verdade cada veículo está confiando no outro para fazer um bom trabalho: reportagem, edição, e assim por diante. É por isso que colocamos tanta ênfase na seleção dos parceiros, nos veículos que entram para a Rede e em todo o trabalho de edição e tradução."


Chani Guyot é bolsista do programa ICFJ Knight.

Essa matéria foi originalmente publicada pela LatAm Journalism Review e republicada na IJNet com permissão.

Foto por Eyoel Kahssay via Unsplash.