A Anistia Internacional alertou em janeiro que a comunidade internacional não deve permitir que as Olimpíadas de Inverno de Pequim se tornem um "cúmplice de um exercício de panfletagem".
A organização teme que a China veja os jogos como uma oportunidade para desviar a atenção das alegadas violações de direitos humanos contra os muçulmanos uigures e a repressão à liberdade de expressão em Hong Kong.
Quando Pequim estava sendo escolhida para sediar os jogos em 2015, a cidade concordou com o Artigo 48 do Estatuto Olímpico, que diz que "todas as decisões relacionadas à cobertura da mídia dos Jogos Olímpicos ficam sob a competência do Comitê Olímpico Internacional (COI)."
A regra está em vigor principalmente para proteger a liberdade da mídia, com acesso irrestrito à internet para jornalistas e a liberdade de ir e vir à vontade no país sede.
Alkan Akad, pesquisador da Anistia Internacional da China, escreveu no relatório: "Não se pode permitir que os Jogos de Inverno de Pequim passem como uma mera oportunidade de 'lavagem esportiva' para as autoridades chinesas, e a comunidade internacional não pode se tornar cúmplice de um exercício de panfletagem. O Comitê Olímpico Internacional (COI) também deve insistir que o governo chinês mantenha sua promessa de garantir a liberdade da mídia."
Imprensa encaixotada
Os jogos, que começam no dia 4 de fevereiro, e as Paralimpíadas, no dia 4 de março, vão ocorrer dentro de uma bolha.
A bolha, conforme detalhada no Manual de Mídia de Pequim, se aplica à totalidade do tempo de permanência na China, e "assegura que não há contato com o público geral nem com ninguém de fora do da bolha".
Poucas semanas antes do manual ser lançado, o Clube de Correspondentes da China postou um fio no Twitter pedindo liberdade de circulação e acesso para realizar uma cobertura jornalística independente. O pedido foi amplamente ignorado.
1/ Statement on Olympic Coverage
— Foreign Correspondents' Club of China (@fccchina) November 2, 2021
The FCCC is concerned about the lack of transparency and clarity from the Beijing Organizing Committee for the Olympic Games (BOCOG) as well as the International Olympic Committee (IOC) with regards to Olympic-related reporting in China.
A partir do momento que jornalistas aterrissam em Pequim, o contato com funcionários do hotel, locais de eventos e conexões de transporte pré-aprovadas é limitado. Foi dito aos repórteres que esperassem por um ambiente alienígena, com a maior parte dos funcionários em serviço possivelmente vestindo trajes de proteção completos.
O Journalism.co.uk entende que alguns repórteres sentem que a política chinesa de Covid zero pode ser usada como uma maneira conveniente de bloquear seu trabalho ao restringir acesso sob o pretexto da segurança.
Um teste positivo de COVID-19 vai significar 21 dias em um hospital seguro para quem tem sintomas e ao mesmo tempo em um local seguro para os assintomáticos.
O mesmo período de isolamento se aplica a qualquer um que for um contato próximo de alguém com um teste positivo, e entende-se que há temor de que esse mecanismo possa ser usado para limitar a cobertura.
Porém, o COI disse que um comitê médico independente vai supervisionar isso.
“Aqui é o hacker”
Associação Olímpica Britânica alertou atletas a não levarem celulares e outros aparelhos para as Olimpíadas de Inverno temendo que eles sejam hackeados.
Os jornalistas seguiram o exemplo, com orientação da Embaixada Britânica de usar celulares “descartáveis” e laptops que possam ter malwares "desinfetados" após os jogos.
Isso também segue conselhos da Repórteres Sem Fronteiras, que encoraja a imprensa estrangeira a se proteger contra a vigilância enquanto estiver trabalhando em Pequim.
Os conselhos incluem usar redes virtuais privadas (VPN na sigla em inglês), serviços de mensagem criptografados e evitar fazer o download de aplicativos desenvolvidos na China, como o TikTok.
No entanto, como parte do manual, exige-se que atletas e jornalistas baixem o aplicativo MY2022, que coleta várias informações, desde endereços de email a dados de saúde.
Evitando a "lavagem esportiva"
Com restrições rigorosas em vigor, em grande parte por causa da COVID-19, e um número reduzido de profissionais da imprensa, os jornalistas esperam sofrer para conseguir a amplitude de pautas que normalmente se tem nas Olimpíadas.
O coordenador asiático do Comitê de Proteção dos Jornalistas (CJP na sigla em inglês), Steven Butler, diz que "jornalistas devem ser livres para fazer seu trabalho como acharem melhor. Há um contingente inteiro de jornalistas em Pequim que não está na bolha. Eles certamente vão fazer uma cobertura bem ampla, até onde puderem."
Mas Butler acredita que qualquer jornalista fora da bolha e a proteção que ela dá têm limitações sobre aquilo que podem dizer.
No dia 19 de janeiro, a jornalista Emily Feng tuitou sobre a "reação virulenta" que ela recebeu por causa de uma matéria sobre um tipo de macarrão chinês, que foi considerada uma crítica à cultura do país.
4/ We were not deterred. After all, I love snail noodles. So I went to Guangxi w/ @nprworld and had a great time and talked to lovely people.
— Emily Feng 冯哲芸 (@EmilyZFeng) January 20, 2022
Here's how some Chinese outlets reacted: 'Anti-China foreign citizen of Chinese descent infiltrates Guangxi:"https://t.co/nhfj7SBdez
"Ela foi assediada em todo canto e foi de fato impedida de fazer a matéria adequadamente", explica Butler. "Se eles estão indo longe assim por causa de uma pauta que não deveria ser polêmica, o que eles vão fazer com jornalistas que tentam cobrir questões de direitos humanos?"
"Vai ter jornalistas [dentro da bolha] que vão estar cobrindo estritamente a competição esportiva. Os editores vão falar para alguns repórteres se limitarem aos esportes e outros a se arriscarem para além disso. Mas se os atletas se posicionarem, os jornalistas vão cobrir."
Jornalistas que ultrapassarem os limites podem encarar um confinamento no hotel ou serem forçados a deixar o país antes da hora, acrescenta Butler, mas fazer isso não pegaria bem com o COI.
Butler acha que é bem mais provável que os jornalistas e veículos vão ser punidos retrospectivamente, com escritórios e correspondentes internacionais sendo expulsos após o fim dos jogos.
O Comitê Consultivo de Segurança do CPJ resume as medidas que repórteres podem tomar na cobertura dos jogos, como proteger fontes, informações pessoais e entender que vai haver vigilância praticamente constante.
O diretor adjunto de relações internacionais do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Pequim (BOCOG na sigla em inglês) disse em janeiro que os atletas podem ter sua credencial cancelada ou outras "punições determinadas" por "qualquer comportamento ou declaração que seja contra o espírito olímpico, especialmente contra as leis e regulamentações chinesas."
No fim de janeiro, a Human Rights Watch deu uma coletiva de imprensa aconselhando atletas a não criticarem o histórico de direitos humanos da China enquanto estiverem competindo nos jogos de inverno no país.
Jornalistas vão ter dificuldade em não cobrir isso caso os atletas se manifestem, mas podem ter sua liberdade de trabalhar na China rapidamente reduzida.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Journalism.co.uk e republicado pela IJNet com autorização.
Foto por Bryan Turner no Unsplash.