Como jornalistas podem documentar crimes internacionais

Sep 15, 2022 em Reportagem de crise
Graves at Srebrenica

Jornalistas normalmente observam eventos, coletam informações e conversam com fontes ao realizarem seu trabalho. E se, sem se desviar do cerne da reportagem, eles também soubessem como conservar evidências vitais reunidas durante a apuração para que elas sejam usadas em processos legais? Isso pode ser especialmente importante em zonas de conflito e em crise, onde crimes internacionais estejam sendo cometidos, como durante a invasão da Rússia à Ucrânia e o conflito internacional no Myanmar.  

Um novo guia do Centre for Law and Democracy ensina as medidas práticas que jornalistas podem tomar para assegurar que as informações coletadas relacionadas a crimes internacionais possam ser usadas como evidência sob os olhos da lei — ajudando, assim, os tribunais a estabelecerem quais crimes foram cometidos, como e por quem.

"Você não pode tratar essa informação do mesmo jeito que trataria uma matéria porque os tribunais têm regras muito particulares em relação a provas", explica Toby Mendel, diretor executivo do centro.

O guia foca suas recomendações em três "graves crimes internacionais" definidos pelo Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional. Não é essencial que jornalistas se tornem especialistas nesses tipos de crimes, mas sim que entendam o que os define:

  • Genocídio, definido como "qualquer um dos atos seguintes cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal". Isso inclui assassinatos em massa de membros de um grupo, infligir graves danos mentais ou físicos a esses grupos, evitar nascimentos nesse grupo e outras ações tomadas com a intenção sistemática de destruir o grupo. 
  • Crimes contra a humanidade, ou "qualquer um dos atos seguintes cometidos como parte de um ataque extenso ou sistemático dirigido contra qualquer população civil". Estes crimes incluem assassinato, tortura, estupro, escravização, dentre outros. Em alguns casos, discurso de ódio também pode ser considerado um crime contra a humanidade se ele estimula crimes contra civis.
  • Crimes de guerra são "sérias" ou "graves" violações da Convenção de Genebra e das leis de conflitos armados, tanto entre estados quanto em conflitos internos. Esses crimes incluem casos de assassinato, tortura e estupro, bem como ataques contra prédios religiosos ou de educação, emprego de formas proibidas de guerra, como guerra química, e usar civis como escudo.

Provas dessas três categorias são avaliadas nos tribunais à luz de sua relevância para os crimes potencialmente cometidos, o quanto elas demonstram os crimes com credibilidade e a "ausência de efeito prejudicial". Para evitar que provas sejam excluídas em função desse último componente, o guia recomenda compilar evidências em vários formatos diferentes sempre que possível.

O guia também aconselha a coletar a maior quantidade possível de metadados sobre as informações coletadas. Informações de data, hora e local de fotografias e registros de áudio e vídeo ajudam a verificar a autenticidade para os tribunais. Capturar material multimídia que contenha imagens de elementos que corroboram as evidências, como relógios de rua ou placas, ajuda também, assim como relatos escritos e assinados que ofereçam mais contexto e detalhes sobre a informação coletada. 

Ao entrevistar vítimas e testemunhas, assegure-se de obter "consentimento informado", idealmente por meio de um formulário assinado ou registro em áudio ou vídeo. "Normalmente, isso significa que a pessoa entende quem você é, onde a entrevista será exibida e quem irá vê-la, e quaisquer riscos potenciais associados com a realização da entrevista", informa o guia. Quanto mais credibilidade tiver a pessoa, melhor, e provas anônimas não são admitidas pelos tribunais. Durante as suas entrevistas, não faça perguntas que induzam um tipo de resposta, pois elas podem ser consideradas inválidas pelo tribunal. 

Dada a alta sensibilidade da documentação de evidências sobre crimes internacionais, jornalistas devem tomar precauções extra para salvaguardar a informação digital e física coletada. "Riscos de segurança podem ser particularmente elevados quando o governo que está no poder é cúmplice dos crimes ou tem um interesse estrutural em escondê-los", observa o material.

Armazene informação em formato criptografado; delete ou esconda informação armazenada em seus aparelhos; criptografar, anonimizar ou esconder as identidades de suas fontes são todos bons primeiros passos para proteger essa informação. O aplicativo eyeWitness, que deleta automaticamente informação carregada no servidor a partir do seu telefone, também é útil, principalmente porque ele fica camuflado na tela inicial do celular e, por isso, há menos chances de ser descoberto. 

À medida que jornalistas incorporam esses passos ao seu trabalho, Mendel reitera que a orientação foi feita para complementar a reportagem crítica que os jornalistas já fazem em zonas de conflito — não para afastá-los das tarefas principais. "Nosso objetivo não é desviar os jornalistas do seu trabalho central de apuração e divulgação, mas tirar vantagem daquilo que eles eventualmente observarem caso estejam naqueles lugares e contribuir para esse importante esforço global", explica. "Ainda que não seja uma atividade ligada à reportagem, é uma atividade de apuração de informação, então se encaixa na alçada mais ampla do trabalho que jornalistas fazem enquanto profissionais da informação." 

Jornalistas também não devem permitir que nenhuma dessas recomendações comprometa sua ética. Por exemplo, embora você se apoie em fontes de informação confidenciais para ajudar no seu trabalho, o uso dessa informação em um tribunal pode exigir a revelação de identidades. Nesses casos, priorize o seu jornalismo, orienta o guia. "Quando se deparar com a escolha entre proteger uma fonte confidencial e ajudar uma investigação criminal internacional, o jornalista deve quase invariavelmente optar pela primeira opção, incluindo proteger a integridade editorial de seu trabalho jornalístico."

Mendel espera que jornalistas obtenham com o guia a habilidade de reconhecer o que é um crime internacional — nem tudo que está errado chega a esse ponto — e incorporar os passos práticos apresentados para verificar a informação para que ela se sustente nos tribunais.

"Levar os criminosos à Justiça é parte do caminho para reduzir o nível de crimes internacionais", diz. "Assim como acontece com qualquer crime, processar as pessoas é uma parte importante do controle dos níveis de crime na sociedade."


O guia atualmente está disponível em inglês, russo e birmanês, e em breve em ucraniano.

Foto por Magdalena via Unsplash.