Colágeno e desmatamento: como descobrimos a origem suja do famoso produto

por Elisângela Mendonça
Oct 24, 2023 em Reportagem de meio ambiente
Deforestation

A Rede de Investigações de Florestas Tropicais (RIN na sigla em inglês) perguntou aos seus bolsistas de 2022 sobre as metodologias inovadoras por trás de suas reportagens de impacto. A seguir está uma versão resumida publicada no site do Pulitzer Center:


Quando comecei meu projeto investigativo com a Rede de Investigações de Florestas Tropicais, eu sabia que queria revelar como produtos alimentícios estão afetando a saúde da Floresta Amazônica e as vidas dos povos indígenas que vivem nela. 

Eu fiquei surpresa ao descobrir, durante a análise de dados e verificação de documentos, que um dos chamados subprodutos da produção de carne – o colágeno – também está estreitamente ligado à destruição da Amazônia e à invasão de territórios indígenas.

 

O suplemento alimentar colágeno, aclamado como uma cura milagrosa anti-idade, é produzido por empresas como a gigante suíça Nestlé, que atualmente não são obrigadas a monitorar suas cadeias de suprimentos. A completa falta de fiscalização e transparência contrasta com a relevância desse segmento que explodiu, endossado por celebridades e com valor de mercado mundial de pelo menos US$ 4 bilhões.

Por sete meses, uma equipe de jornalistas no Reino Unido e no Brasil se juntou para aprofundar na forma de produção do colágeno, analisar dados, analisar registros públicos e privados, exportar documentos, descobrir documentos corporativos e realizar várias entrevistas com especialistas e pessoas no Brasil próximas à cadeia de suprimentos de colágeno e gelatina.

Team
Da direita para a esquerda: Fábio Zuker (repórter), Elisângela Mendonça (repórter), Cícero Pedrosa Neto (cineasta) e Luiz Júnior (motorista) Crédito: Fábio Zuker

 

Nós entendíamos que as alegações de que o colágeno é um "produto de origem sustentável" podiam não ser verdadeiras já que a pele bovina usada em sua produção tem origem em empresas frigoríficas controversas como JBS, Marfrig e Minerva. Nossa equipe, por exemplo, já tinha mostrado como fornecedores da Marfrig estavam ameaçando o modo de vida do povo indígena Mỹky no estado do Mato Grosso, na região da Amazônia brasileira.

Fontes de dados

Esta é a lista completa de conjuntos de dados e fontes que usamos na nossa investigação:

  • Dados cinza: registros financeiros de empresas, relatórios de sustentabilidade e de relações com investidores, apresentações em conferências comerciais
  • Google: releases de imprensa, matérias, comentários sobre o mercado
  • SEC: informações de empresas listadas em bolsa, como a Darling Ingredients 
  • Panjiva, Import Genius: registros de exportação
  • YouTube: normalmente uma boa fonte para vídeos corporativos de relações públicas   
  • Sayari, OpenCorporates, Aleph, Cruza Grafos: informações de empresas
  • JusBrasil: processos judiciais contra empresas e pessoas
  • SIGEF, CAR: registros de propriedades no Brasil
  • Prodes: dados de desmatamento
  • MapBiomas: alertas recentes de desmatamento e incêndios
  • Google Earth: imagens de satélite 
  • Ibama: embargos e multas
  • FUNAI: arquivos de dados geoespaciais de territórios indígenas
  • MTE: lista de escravidão moderna no Brasil
  • Localizações de abatedouros
  • MAPA: informações de abatedouros e de plantas licenciadas para exportação
  • Listas vazadas de fornecedores de frigoríficos e licenças para transporte de gado (GTAs)
  • CIMI, CPT: relatórios de conflitos de terras
  • Redes sociais: Twitter e Facebook para encontrar contatos e detalhes de proprietários de fazendas bem como informações em perfis oficiais de empresas 
  • Entrevistas abertas e em off com várias fontes

Metodologia

Crédito: TBIJ

 

Quando nossa equipe estava investigando o envolvimento da Nestlé no comércio de carne, meu colega do Bureau de Jornalismo Investigativo (TBIJ na sigla em inglês) Andrew Wasley notou algo estranho nos registros de exportação. "Hmm, por que todas essas exportações de colágeno hidrolisado aparecendo?", nós nos perguntamos. Nós usamos a plataforma Panjiva para extrair todos os registros recentes de envio de colágeno bovino do Brasil para o resto do mundo e, como esperado, a Nestlé era uma das principais compradoras, e a Rousselot e a Gelnex eram duas das principais vendedoras.

A relação entre essas empresas foi estabelecida usando plataformas de dados corporativos, tais como Aleph, Sayari Graph, arquivos SEC e registros públicos brasileiros como o cadastro de CNPJ. Nós mapeamos subsidiárias de empresas e operações dentro e fora do Brasil. Também usamos o melhor amigo do jornalista: o Google, que nos mostrou rapidamente que a Rousselot e a Gelnex tinham mais em comum do que pensávamos, mais precisamente, elas tinham a mesma empresa-mãe, a poderosa Darling Ingredients, com sede no Texas. 

Nós conseguimos tudo que podíamos com a apuração no escritório. Agora era o momento de enviar uma equipe de repórteres para uma viagem de campo a uma das fábricas de colágeno, em Amparo, uma pequena cidade industrial em São Paulo. Entrevistas com moradores, motoristas de caminhão e especialistas revelaram algumas das peças do quebra-cabeça que faltavam, como os nomes das empresas envolvidas, desde fábricas de couro, onde as peles são processadas, até os abatedouros fornecedores dessas fábricas.

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Caminhão carregado com pele bovina estacionado na Gelnex, uma das fábricas de colágeno. Crédito: Cícero Pedrosa

Depois de sabermos quais abatedouros estavam envolvidos, usamos a expertise do TBIJ no rastreio de cadeias de suprimento de carne para encontrar as fazendas de gado fornecedoras tanto no Cerrado quanto no Pantanal. Para isso, combinamos raspagem de dados de um dos sites de transparência da empresa com dados vazados sobre um dos fornecedores, e cruzamos essa informação com registros de propriedade, territórios de terras indígenas e dados de desmatamento no Brasil.   

Essa era só a ponta do iceberg. Como queríamos mostrar que o problema era sistêmico, expandimos a pesquisa para outra área de abastecimento, mais precisamente a produtora de colágeno Gelnex, com sede na Amazônia. Neste ponto, fizemos uma parceria com o Centro para Análises do Clima e de Crimes (CCCA na sigla em inglês). Eles nos deram uma análise meticulosa do desmatamento e da invasão de territórios indígenas e protegidos que estão ligados a milhares de fazendas de gado que vendem os animais para três abatedouros ligados à produção de colágeno. 

Agora, com a informação de que mais de 2.500 km² de desmatamento recente e a invasão de vários territórios indígenas estavam conectados, era a hora de ir a campo novamente. Nossa equipe viajou para três estados brasileiros, São Paulo, Tocantins e Pará, para visitar fábricas de colágeno e couro, abatedouros, fazendas e terras indígenas sob pressão massiva da expansão da indústria do gado. Nós entrevistamos moradores, especialistas, motoristas de caminhão e funcionários dessas empresas, enquanto o mau cheiro de carne de vaca apodrecendo e moscas tomavam conta do ar próximo a esses estabelecimentos. Voltamos para casa com descobertas blindadas e um pouco chocados com o fato de que uma indústria sofisticada que afirma produzir um suplemento que é bom para a saúde está destruindo a saúde do planeta.  


Foto por Annie Spratt via Unsplash.

Este texto foi publicado originalmente pelo Pulitzer Center e publicado na IJNet com permissão.