Cobertura da desigualdade de gênero praticamente não existe

Feb 23, 2023 em Diversidade e Inclusão
Women at work

Não há mais nada para discutir sobre igualdade de gênero porque já fomos longe o bastante.

Cansei de me falarem que jornalistas continuam fazendo errado a cobertura de diversidade e gênero. É uma ladainha.

A agenda noticiosa está tão cheia de pautas existenciais. Eu não tenho tempo de analisar as diferenças entre homens e mulheres. De qualquer forma, elas não são significativas. 

Você se identifica com algumas dessas afirmações no papel de jornalista? Se a resposta for sim, você não está só. Independentemente do gênero, muitos jornalistas e editores pelo mundo concordam com pelo menos uma delas. 

Sendo tão prevalentes, essas afirmações podem estar te custando uma porção da sua potencial audiência no jornalismo: as mulheres, que não se veem refletidas no noticiário. Muitas mulheres estão abandonando veículos jornalísticos de vez, na maioria das vezes privilegiando matérias compartilhadas por familiares ou amigos nas redes sociais. A análise de consumo de notícias que realizamos com o SimilarWeb na consultoria estratégica de audiência internacional AKAS, que fundei junto com Richard Addy, revela consideráveis 20% de diferença no consumo de notícias online por homens e mulheres no mundo inteiro. Na Índia, Nigéria, Estados Unidos, Reino Unido, Quênia e África do Sul, o consumo de notícias online por homens ultrapassa o de mulheres em 29%, 25%, 22%, 21%, 18% e 7% respectivamente. 

O que os veículos online estão deixando de fazer para servir suas audiências femininas? Um dos principais pontos cegos da área é a falha em reconhecer ou fazer a cobertura da desigualdade sistemática de longa data entre homens e mulheres que concede aos homens vantagens injustas sobre as mulheres. A última análise GDELT feita pela AKAS de 1 bilhão de notícias publicadas online desde 2017 descobriu que menos de 0,08% desses textos continham os termos "gênero" ou "desigualdade(s) de gênero".

No estudo "Do ultraje à oportunidade", lançado em novembro de 2022, eu analisei ângulos de reportagem subutilizados para sete desigualdades estruturais significativas entre homens e mulheres: desigualdade salarial, de poder, confiança, autoridade, segurança, saúde e idade. A análise AKAS GDELT descobriu que 0,02% da cobertura global desde 2017 fez referência a alguma dessas sete desigualdades. Consequentemente, qualquer enfoque estrutural é amplamente ausente.   

A emissão de editores e jornalistas frequentemente não é deliberada. Quando perguntei a editores seniores sobre seus pontos de vista sobre o porquê de a proporção de matérias sobre igualdade de gênero no noticiário ser tão baixa, três razões emergiram.

Primeiro, dois em cada três enfatizaram a falta de conscientização ou de habilidades para buscar por matérias ou ângulos baseados no gênero.

Uma editora sênior de um país do Sul Global explicou o problema: "o que falta é a sensibilização de jornalistas para que de fato olhem para os ângulos de gênero das matérias que produzem. Se um jornalista fosse treinado para buscar pelo ângulo de gênero em uma [pauta sobre saúde no meu país], ele consideraria as mudanças [de políticas] propostas — como elas vão afetar homens e mulheres de forma diferente?"

A segunda razão para a morte da cobertura da desigualdade de gênero pode ser atribuída à compreensão estreita dentro do jornalismo do que constitui uma matéria sob a ótica de gênero. Por exemplo, em vez de enxergar as desigualdades sistemáticas de gênero de longa data como um elemento que permeia todas as pautas, independentemente da editoria, metade dos editores entrevistados classificaram matérias de gênero como "soft news", regularmente considerando-as menos importantes dentro de uma agenda noticiosa incrivelmente competitiva.

A terceira razão surgiu quando essa definição estreita de uma matéria de gênero foi levada ainda mais fundo, quando um terço dos editores seniores entrevistados admitiram ser céticos sobre a necessidade de aplicar uma ótica de gênero às matérias. Essa atitude foi resumida por uma jornalista em posição de liderança do Norte Global: "nós só temos capacidade de cobrir determinadas pautas e vamos cobrir exatamente elas porque sabemos que são as que vão ter sucesso."

Bom, o noticiário não está tendo tanto sucesso com a audiência feminina como os veículos jornalísticos pensavam anteriormente. Mas isso pode mudar se a mentalidade dos jornalistas evoluir e ficar em maior consonância com as mulheres em toda a cadeia de valor do jornalismo, incluindo em cargos de liderança, produção de notícias e nas notícias em si.

Talvez a intervenção mais significativa para a mudança esteja na conscientização das organizações a respeito do persistente viés masculino na seleção de pautas e ângulos de reportagem, nas pessoas escolhidas para transmiti-las e nas audiências que as consomem. Nas palavras da respeitada Mary Ann Sieghart, que eu entrevistei para o estudo "Do ultraje à oportunidade", a persistência do viés masculino é "como um elástico: assim que você para de esticar, ele volta ao padrão de ter mais homens do que mulheres". 

Em qual das desigualdades de gênero as redações deveriam focar a cobertura? A maioria dos editores entrevistados (64%) selecionou a desigualdade salarial como a mais importante de se expor no noticiário, em partes porque é mais fácil de medir e monitorar e, portanto, mais simples de se informar. A segunda desigualdade mais urgente para se priorizar na cobertura, selecionada por 45%, é a desigualdade de poder.

De forma mais ampla, veículos jornalísticos (e faculdades de jornalismo) que estão explorando a oportunidade substancial que o jornalismo equitativo apresenta para o seu objetivo final deveriam capacitar jornalistas e editores para identificar diferenças de gênero em matérias e no consumo de notícias em todas as editorias, como política, negócios, políticas sociais, economia e educação. As diferenças estão sempre lá, assim como estão no gênero das fontes que os repórteres escolhem para destacá-las. 

Mas esse desafio vai levar tempo, como alerta um repórter experiente do Norte Global: "temos novos repórteres que vêm de sistemas educacionais que estão tentando enfatizar abordagens mais equitativas no jornalismo. Mas frequentemente os repórteres - novos e veteranos - estão acostumados com formas particulares de reportagem, então é preciso muito tempo para mudar velhos hábitos." 

Mas nós podemos mudá-los. Pouco a pouco.


Foto por Mimi Thian via Unsplash.