Ao contrário de outras doenças com alcance geográfico restrito, como a causada pelo vírus ebola, a COVID-19 é uma pandemia que atinge o planeta de forma mais “democrática”. Afinal, a lista de infectados e de vítimas inclui de jovens a idosos, de todas as raças e de todas as classes sociais. Saldo bancário expressivo não é sinônimo de imunidade e nem sempre garante um respirador para salvar sua vida.
Com inúmeras editorias soterradas pela cobertura dos efeitos do coronavírus sobre a sociedade humana, é preciso e possível encontrar brechas para que temas estratégicos sigam ganhando luz, como as crises globais do clima e especialmente da acelerada perda de vida selvagem. Mesmo que seus impactos ocorram em outras escalas de tempo ou aparentemente distantes do dia-a-dia humano.
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Animais urbanos
A pandemia tem gerado notícias ligadas à biodiversidade. Não só por estudos apontando que o caminho da COVID-19 até as pessoas pode ter sido através do contato e consumo de animais selvagens, como o pangolim e morcegos, mas também pela circulação de inúmeras espécies em ambientes urbanos liberados pelo isolamento social e confinamento. Porcos selvagens perambulavam até na francesa Cannes, famosa pelo festival internacional de cinema.
Mas o fenômeno é tão efêmero quanto o céu azul que cobre cidades por enquanto livres da poluição, avisam instituições de pesquisa e ONGs internacionais. Passada a fase mais crítica da pandemia, as pessoas retomaram seus hábitos nos espaços urbanos, onde já vive mais de 60% da humanidade. A fauna silvestre encontrará caminho aos ambientes naturais assim como chegou à urbe? Ou esses animais serão enjaulados, caçados, enxotados e atropelados?
No Brasil, a caça está proibida desde os anos 1960, mas é crime ainda praticado em todo o país. Enquanto isso, quase 500 milhões de animais morrem atropelados todo ano em rodovias, estradas e ferrovias brasileiras, conforme o Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas da Universidade Federal de Lavras (MG). Um projeto de lei para frear a “mortandade viária” tramita no Congresso Nacional há cinco anos, enquanto outras propostas querem legalizar as caçadas no país.
Balanços globais
Este ano encerra a Década da Biodiversidade, quando os 196 países ligados à Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas deveriam cumprir metas para reduzir a extinção de vida selvagem. Uma das principais pedia que cada membro protegesse 17% de suas terras e águas continentais e 10% das áreas marinhas e costeiras. Esse guarda-chuva deveria cobrir também as porções mais importantes para a vida selvagem e estar realmente implantado, não ser apenas “papel pintado”.
Criar e manter parques nacionais e outras Unidades de Conservação são reconhecidas como as principais ferramentas para a conservação da biodiversidade, que ajuda a proteger mecanismos naturais (ecossistemas) que nos fornecem água limpa e cenários turísticos, regulam o clima, e asseguram polinizadores para a agricultura e insumos para diversas outras economias.
Inúmeros países buscaram os percentuais apontados pelas Nações Unidas, e áreas protegidas cobrem hoje em média 15% das terras globais, mas inúmeras regiões valiosas para a biodiversidade seguem descobertas. Estudo publicado na revista Science apontou que ações humanas aceleraram em mil vezes a extinção de espécies no planeta. A Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade avalia que 1 milhão de espécies sumirão nas próximas décadas, especialmente pelo avanço da agropecuária.
No Brasil e conforme o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, a zona marinha e a Amazônia têm respectivamente 26% e 28% de suas áreas protegidas. Todos os outros biomas carecem de maior proteção. Ao mesmo tempo, o governo Jair Bolsonaro congelou a criação de Terras indígenas, de Parques Nacionais e outras Unidades de Conservação, promove o desmatamento e desmonta políticas e órgãos socioambientais.
Durante encontro no Palácio do Planalto, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu que o governo aproveitasse a pandemia de COVID-19 para fragilizar a legislação ambiental. Mudanças na área protegida no Brasil e no planeta podem ser conferidas em bases mantidas por ONGs.
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Preço da retomada
A pandemia virou terreno fértil para análises sobre o modelo de desenvolvimento econômico dominante e a forma de relacionamento da sociedade moderna com os ambientes naturais. Tudo para reduzirmos as chances de uma nova doença como a COVID-19. Nessa rota, as apostas vão desde que a humanidade finalmente encontrará meios para viver em maior harmonia com a natureza até um arrocho na vigilância governamental e na extração de recursos naturais para a retomada econômica.
Ao mesmo tempo, é consenso na comunidade científica que uma nova pandemia surgirá caso o meio ambiente siga sendo costumeiramente atacado e destruído. Estudos apontam que 1,7 milhão de diferentes vírus com potencial para infectar humanos vivem em mamíferos e aves. Como mostrei em reportagem ao portal Infoamazonia, desmatamento e queimadas, obras de infraestrutura, urbanização, garimpo e tráfico empurram espécies para perto das pessoas, aumentando as chances de contágio.
A COVID-19 reforçou a mensagem de que defender as saúdes humana e a ambiental deve ser um trabalho conjunto. Mas isso não pode ser esquecido, precisa estar na agenda política, privada e social após a crise provocada pela pandemia. Os sinais, por enquanto, são conflitantes. Enquanto países europeus como Holanda e Alemanha se movimentam para tornar suas economias mais ambientalmente sustentáveis, os Estados Unidos anunciaram que relaxarão leis ambientais para diminuir a recessão e a China bate recordes na emissão de poluentes.
Diferentes rotas para um mesmo futuro, das pessoas e da vida selvagem.
Aldem Bourscheit é jornalista independente baseado em Brasília (DF), focado em histórias sobre conservação da natureza, ciência, comunidades tradicionais e indígenas. Colabora com veículos de comunicação e organizações não governamentais do Brasil e do exterior. Membro da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental e da Comissão sobre Educação e Comunicação da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
Imagem sob licença CC no Flickr por Milton Jung