Cobrindo biodiversidade durante e após a pandemia

May 25, 2020 em Reportagem sobre COVID-19
Grafite de natureza selvagem na cidade

Ao contrário de outras doenças com alcance geográfico restrito, como a causada pelo vírus ebola, a COVID-19 é uma pandemia que atinge o planeta de forma mais “democrática”. Afinal, a lista de infectados e de vítimas inclui de jovens a idosos, de todas as raças e de todas as classes sociais. Saldo bancário expressivo não é sinônimo de imunidade e nem sempre garante um respirador para salvar sua vida.

Com inúmeras editorias soterradas pela cobertura dos efeitos do coronavírus sobre a sociedade humana, é preciso e possível encontrar brechas para que temas estratégicos sigam ganhando luz, como as crises globais do clima e especialmente da acelerada perda de vida selvagem. Mesmo que seus impactos ocorram em outras escalas de tempo ou aparentemente distantes do dia-a-dia humano.

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Animais urbanos 

A pandemia tem gerado notícias ligadas à biodiversidade. Não só por estudos apontando que o caminho da COVID-19 até as pessoas pode ter sido através do contato e consumo de animais selvagens, como o pangolim e morcegos, mas também pela circulação de inúmeras espécies em ambientes urbanos liberados pelo isolamento social e confinamento. Porcos selvagens perambulavam até na francesa Cannes, famosa pelo festival internacional de cinema.

Mas o fenômeno é tão efêmero quanto o céu azul que cobre cidades por enquanto livres da poluição, avisam instituições de pesquisa e ONGs internacionais. Passada a fase mais crítica da pandemia, as pessoas retomaram seus hábitos nos espaços urbanos, onde já vive mais de 60% da humanidade. A fauna silvestre encontrará caminho aos ambientes naturais assim como chegou à urbe? Ou esses animais serão enjaulados, caçados, enxotados e atropelados? 

No Brasil, a caça está proibida desde os anos 1960, mas é crime ainda praticado em todo o país. Enquanto isso, quase 500 milhões de animais morrem atropelados todo ano em rodovias, estradas e ferrovias brasileiras, conforme o Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas da Universidade Federal de Lavras (MG). Um projeto de lei para frear a “mortandade viária” tramita no Congresso Nacional há cinco anos, enquanto outras propostas querem legalizar as caçadas no país.

Balanços globais

Este ano encerra a Década da Biodiversidade, quando os 196 países ligados à Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas deveriam cumprir metas para reduzir a extinção de vida selvagem. Uma das principais pedia que cada membro protegesse 17% de suas terras e águas continentais e 10% das áreas marinhas e costeiras. Esse guarda-chuva deveria cobrir também as porções mais importantes para a vida selvagem e estar realmente implantado, não ser apenas “papel pintado”. 

Criar e manter parques nacionais e outras Unidades de Conservação são reconhecidas como as principais ferramentas para a conservação da biodiversidade, que ajuda a proteger mecanismos naturais (ecossistemas) que nos fornecem água limpa e cenários turísticos, regulam o clima, e asseguram polinizadores para a agricultura e insumos para diversas outras economias.

Inúmeros países buscaram os percentuais apontados pelas Nações Unidas, e áreas protegidas cobrem hoje em média 15% das terras globais, mas inúmeras regiões valiosas para a biodiversidade seguem descobertas. Estudo publicado na revista Science apontou que ações humanas aceleraram em mil vezes a extinção de espécies no planeta. A Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade avalia que 1 milhão de espécies sumirão nas próximas décadas, especialmente pelo avanço da agropecuária.

No Brasil e conforme o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, a zona marinha e a Amazônia têm respectivamente 26% e 28% de suas áreas protegidas. Todos os outros biomas carecem de maior proteção. Ao mesmo tempo, o governo Jair Bolsonaro congelou a criação de Terras indígenas, de Parques Nacionais e outras Unidades de Conservação, promove o desmatamento e desmonta políticas e órgãos socioambientais.

Durante encontro no Palácio do Planalto, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu que o governo aproveitasse a pandemia de COVID-19 para fragilizar a legislação ambiental. Mudanças na área protegida no Brasil e no planeta podem ser conferidas em bases mantidas por ONGs.

[Leia mais: Contexto é essencial ao reportar sobre povos indígenas e COVID-19]

Preço da retomada 

A pandemia virou terreno fértil para análises sobre o modelo de desenvolvimento econômico dominante e a forma de relacionamento da sociedade moderna com os ambientes naturais. Tudo para reduzirmos as chances de uma nova doença como a COVID-19. Nessa rota, as apostas vão desde que a humanidade finalmente encontrará meios para viver em maior harmonia com a natureza até um arrocho na vigilância governamental e na extração de recursos naturais para a retomada econômica.

Ao mesmo tempo, é consenso na comunidade científica que uma nova pandemia surgirá caso o meio ambiente siga sendo costumeiramente atacado e destruído. Estudos apontam que 1,7 milhão de diferentes vírus com potencial para infectar humanos vivem em mamíferos e aves. Como mostrei em reportagem ao portal Infoamazonia, desmatamento e queimadas, obras de infraestrutura, urbanização, garimpo e tráfico empurram espécies para perto das pessoas, aumentando as chances de contágio. 

A COVID-19 reforçou a mensagem de que defender as saúdes humana e a ambiental deve ser um trabalho conjunto. Mas isso não pode ser esquecido, precisa estar na agenda política, privada e social após a crise provocada pela pandemia. Os sinais, por enquanto, são conflitantes. Enquanto países europeus como Holanda e Alemanha se movimentam para tornar suas economias mais ambientalmente sustentáveis, os Estados Unidos anunciaram que relaxarão leis ambientais para diminuir a recessão e a China bate recordes na emissão de poluentes.

Diferentes rotas para um mesmo futuro, das pessoas e da vida selvagem.


Aldem Bourscheit é jornalista independente baseado em Brasília (DF), focado em histórias sobre conservação da natureza, ciência, comunidades tradicionais e indígenas. Colabora com veículos de comunicação e organizações não governamentais do Brasil e do exterior. Membro da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental e da Comissão sobre Educação e Comunicação da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).

Imagem sob licença CC no Flickr por Milton Jung 


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Freelance writer

Aldem Bourscheit

Aldem Bourscheit is an independent journalist based in Brasília, focused on stories about nature conservation, science, traditional and indigenous communities. Bourscheit collaborates with media outlets and non-governmental organizations in Brazil and abroad. He is a member of the Brazilian Network of Environmental Journalism and of the Commission on Education and Communication of the International Union for the Conservation of Nature (IUCN, in Portuguese).