A violência sexual é um assunto complexo e um tabu que continua sendo mal compreendido por jornalistas. Identificar o tema, proteger as fontes e informar com ética é especialmente desafiador em tempos de guerra. Assim como nos conflitos da Síria e da antiga Iugoslávia, relatos de violência sexual durante a atual invasão da Rússia à Ucrânia estão nas manchetes. Como jornalistas podem cobrir esses casos com responsabilidade?
Para compartilhar as melhores práticas, a Rede Internacional de Jornalismo Investigativo realizou recentemente um webinar sobre investigação e cobertura de violência sexual relacionada a conflitos (CRSV na sigla em inglês). Na ocasião, em novembro, os convidados Alix Vuillemin, Lauren Wolfe e Gavin Rees discutiram os muitos aspectos desse tópico difícil, com tradução em francês, espanhol e russo.
Identificação da violência sexual ou violência sexualizada
Em primeiro lugar, uma observação sobre terminologia. O termo "violência sexualizada" é cada vez mais usado por especialistas em vez de "violência sexual" para descrever com precisão a motivação do criminoso, que é exercer poder e controle em vez de obter gratificação sexual. Alguns usam o termo de forma intercambiável.
Alix Vuillemin, assessora sênior da Women’s Initiatives for Gender Justice, discutiu os princípios básicos de como esses crimes se manifestam em zonas de guerra e de conflitos.
"Onde há conflito, há violência sexual, sempre", disse Vuillemin.
Esse tipo de violência é definido como "atos que são intencionais, não consensuais e de natureza sexual que ocorrem durante ou são relacionados a um conflito, cometidos por ou contra qualquer pessoa, independentemente da idade, sexo ou gênero."
Vuillemin destacou que violência sexualizada não é sinônimo de estupro. Mutilação genital, nudez forçada, gravação e compartilhamento de fotos íntimas, humilhação sexual como forçar alguém a se vestir como um gênero com o qual a pessoa não se identifica e assédio sexual são exemplos de violência sexualizada.
Há indicadores externos que podem prever a violência sexualizada, observou Vuillemin. Desaparecimentos, evacuações, invasões de casas, proliferação de armas, detenção em campos e em controles de fronteira, movimento de tropas após vitória ou derrota e saques são todos "sinais de alerta" para a violência sexualizada em uma zona de conflito.
Jornalistas devem se familiarizar com a Convenção de Haia sobre Violência Sexual – um modelo focado no sobrevivente, com sensibilidade cultural e inclusivo para qualquer pessoa que vá interagir com vítimas.
Vuillemin disse que o principal fator para determinar se algo tem natureza sexual é a percepção do criminoso, da vítima ou de suas respectivas comunidades.
Frequentemente, a violência sexualizada é usada como uma arma de guerra porque tem como alvo toda uma comunidade. Jornalistas precisam lembrar que em culturas baseadas na honra, uma mulher é alvo de violência sexual porque isso pode impactar toda sua família e comunidade.
Princípios para não causar dano e técnicas de entrevista baseadas em trauma
Devido à repercussão que a violência sexual pode ter em toda uma comunidade, é crucial tomar cuidados extras para proteger a identidade dos sobreviventes, disse a jornalista veterana Lauren Wolfe, professora adjunta da Universidade de Nova York.
"Você preferiria que alguém fosse morto ou contar a história com um pseudônimo?", disse ela, ao enfatizar a escolha que os jornalistas enfrentam ao cobrir esse assunto.
Wolfe falou sobre a importância de ser sensível e discreto ao lidar com vítimas de violência sexualizada. Em vez de ir atrás de campos de refugiados, encontre ONGs locais que trabalham com vítimas e peça para ser apresentado a alguém que deseje falar. Quando encontrar uma fonte, garanta que ela está protegida, mesmo se ela concordar em se identificar. Se há um risco de vigilância digital por parte da polícia ou do governo, por exemplo, não se comunique com as fontes usando um telefone.
Quando se trata da entrevista em si, deixe o sobrevivente guiar a conversa, disse Wolfe. Tome cuidado para não retraumatizar as vítimas ao confirmar detalhes da violência sofrida. Para evitar esses erros, abaixo estão algumas dicas de entrevista fundamentais de Wolfe e Gavin Rees do Dart Center for Journalism & Trauma:
- ´Vá devagar. Deixe a fonte ditar o ritmo da conversa. Dê à entrevista o tempo e a atenção que merece, sem se apressar.
- Evite perguntas com "por quê". A polícia e interrogadores tendem a usar perguntas do tipo "por quê" – isso pode ser chocante para as vítimas.
- Não peça detalhes vívidos. Normalmente, isso não é necessário para a matéria. Isso pode levar à sensacionalização do evento e causar ainda mais dano à vítima ao forçá-la a reviver a experiência.
- Revise e explique sobre o consentimento. Assegure-se de que a pessoa com quem você vai falar, seja quem for, entenda qual é a audiência que vai ter acesso à matéria e se ela será impressa (compartilhamento limitado) ou em formato digital (circulação mundial). Não assuma que a fonte entende como funciona o jornalismo.
- Obtenha contexto. Violência sexual é uma arma de guerra. Fazer perguntas como "o que o soldado estava usando?" e "o que ele disse?" pode ajudar a estabelecer se os ataques são o resultado de ações individuais ou decisões da linha de comando.
- Converse com médicos e equipes de apoio. Médicos e psicólogos que tratam das vítimas podem te dar informação sobre as circunstâncias do ataque (tais como onde as vítimas foram encontradas, se os soldados estavam presentes antes do ataque ou se ocorreram invasões).
- Siga a regra dos terços. Primeiro, pergunte às fontes sobre momentos em que elas se sentiram seguras e estáveis, depois sobre o momento anterior à violência e termine com o foco no presente e no que elas estão fazendo no momento atual e como se sentem. Isso evita deixar as pessoas em meio ao seu trauma no fim da entrevista. Destine mais tempo para a parte final da entrevista.
O Dart Centre Europe oferece uma apresentação mais detalhada das melhores práticas para a cobertura de violência sexual relacionada a conflitos.
Entendendo como o trauma afeta a memória e testemunhas
Jornalistas frequentemente estão sob a pressão de encontrar fontes, apresentar notícias de última hora e fazer fotos e vídeos com prazos apertados. Fazer isso em uma zona de conflito quando se está cobrindo violência sexualizada é ainda mais desafiador.
Rees disse que é importante entender que o trauma tem dimensões biológicas, psicológicas e sociais. Isso pode impor alguns desafios aos jornalistas. As vítimas podem ter memórias fragmentadas ou não-lineares em consequência do que acontece no corpo quando ocorre um trauma. Pode haver lacunas nas histórias.
Rees destacou que usar as dicas mencionadas acima ao entrevistar fontes e confirmar as histórias pode ajudar a preencher as lacunas.
"Perguntas como 'o que você pode me dizer sobre...' dá a elas a oportunidade de se voluntariar a informar sobre coisas que se sentem seguras para falar", disse Rees.
Verificar novamente as permissões, perguntando se está tudo bem falar sobre um certo assunto, é uma forma gentil de sugerir linhas de investigação e evitar que a vítima se sinta impelida a responder. Mais importante ainda, Rees acrescentou que é crucial mostrar as pessoas em toda sua complexidade. Evite palavras como "dano" ou "destruição", que insinuam uma ruína contínua.
Por último, Rees discutiu como os próprios repórteres frequentemente vivenciam eventos traumáticos ao trabalhar em zonas de conflito. É perturbador testemunhar e ouvir sobre trauma sexualizado, ele observou, por isso é importante não subestimar sua própria sensibilidade e os efeitos que esse tipo de cobertura pode ter na saúde mental. Buscar apoio é importante para evitar fadiga de compaixão, identificação exagerada com os entrevistados e violação dos limites da relação jornalista-fonte.
Recursos adicionais
Investigação de Abuso Sexual: Dicas e Ferramentas de Reportagem
15 Dicas para Investigar Crimes de Guerra
Lições de Jornalistas Russos que Investigaram Crimes de Guerra Russos
Este artigo foi originalmente publicado pela Rede Internacional de Jornalismo Investigativo e republicado aqui com permissão.
Foto por M.T ElGassier via Unsplash.