O ano de 2020 foi repleto de eventos polarizadores — uma pandemia, protestos fervorosos de Belarus a Hong Kong e Venezuela, Black Lives Matter, as eleições nos Estados Unidos, conflito na República Centro-Africana e Brexit. Quando se trata de reportar histórias tão complexas, os jornalistas têm a responsabilidade de cobri-las com precisão.
Mas muitas vezes, histórias controversas não têm uma realidade dupla, tornando difícil para os jornalistas comunicar todos os aspectos do conflito aos seus leitores. Analisando a cobertura das eleições nos Estados Unidos de 2016, que estava enraizada na polarização, desinformação e discórdia, a jornalista americana Amanda Ripley fez questão de descobrir como os jornalistas poderiam cobrir melhor esses tópicos difíceis. Ela conversou com pessoas experientes em lidar com conflitos de maneiras criativas — advogados, mediadores de conflitos, psicólogos e líderes religiosos — para coletar as melhores práticas para jornalistas adotarem enquanto reportam tais histórias.
“A lição para jornalistas (ou qualquer pessoa) trabalhando em meio a conflitos intratáveis [é]: complicar a narrativa”, diz Ripley. “A complexidade leva a uma história mais completa e precisa.”
Sua pesquisa foi desenvolvida no programa de treinamento “Complicating the Narratives” (CTN) da Solutions Journalism Network (SJN) e tem ajudado jornalistas ao redor do mundo a cobrir histórias controversas de maneiras diferentes.
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Como você pode 'complicar a narrativa'?
De acordo com Ripley, a ideia principal é que os jornalistas abracem a complexidade da história e retratem nuances, contradições e ambiguidades sempre que possível.
Hélène Biandudi Hofer, gerente do programa CTN da SJN, explica que, quando se trata de cobrir questões polêmicas usando o CTN, o objetivo deve ser ouvir profundamente durante a realização de entrevistas e também fornecer empatia e transparência às suas fontes.
O CTN oferece ferramentas práticas e concretas que permitem a jornalistas ouvir melhor, entender os motivos das opiniões de suas fontes e combater o viés de confirmação. Ao fazer isso, os jornalistas podem começar a superar o hábito de acreditar em notícias que apoiam suas crenças pré-existentes e a se abrir para informações que podem desafiá-los.
O programa inclui dicas para entrevistas, perguntas para fontes, ferramentas para escuta ativa e uma abordagem abrangente para lidar com tópicos divisivos.
“Looping” é uma técnica do CTN que incentiva uma melhor escuta durante as entrevistas, aumentando a precisão das informações da fonte. A ideia é repetir para a fonte a mensagem central do que ela compartilhou com você, a fim de se certificar de que você entendeu corretamente. Essa técnica garante anotar as informações corretas e, talvez o mais importante, a fonte se sentirá ouvida e incentivada a compartilhar mais.
O programa de treinamento CTN também inclui um conjunto de 22 perguntas que os jornalistas podem usar em suas entrevistas para ter uma visão mais ampla de uma história. Algumas perguntas oferecem orientação sobre como abordar uma fonte de uma forma que amplifique as contradições em vez de ocultá-las. Isso ajuda repórteres a combaterem o viés de confirmação. Por exemplo, perguntar "O que você quer que o outro lado pense de você?" pode revelar informações valiosas e complexas.
A necessidade atual de reportagens precisas sobre questões controversas
Após o assassinato de George Floyd em junho de 2020, surgiram protestos condenando a brutalidade policial e o racismo em todo o mundo. Na Europa, estátuas de líderes coloniais de alto escalão foram vandalizadas ou derrubadas, impulsionando conversas sobre raça, escravidão e colonialismo.
A Europa está intrinsecamente ligada ao colonialismo, mas a questão raramente é encontrada no discurso público. Como editores da revista pan-europeia Are We Europe, decidimos abraçar este desafio complexo e iniciar uma conversa sobre a relação da Europa com seu passado e presente coloniais, dedicando nossa revista trimestral ao assunto.
Ao abordarmos um tópico tão controverso e complexo, sabíamos que precisávamos de orientação. Nina Fasciaux, gerente para a Europa e coordenadora internacional da SJN e Hofer, gerente do CTN, ofereceram apoio aos nossos editores na Are We Europe. Editores e colaboradores foram treinados em CTN, o que capacitou todos os nossos colaboradores a ouvir e pensar de forma diferente.
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Cobrindo o colonialismo europeu com CTN
A Are We Europe contratou colaboradores de todo o mundo para compartilhar como o colonialismo europeu moldou sua visão de mundo, identidades e comunidades — para melhor ou para pior. Histórias pessoais de lugares como Namíbia, Filipinas, Paquistão, Irlanda, Austrália e Hong Kong expuseram diferentes experiências vividas e ampliaram os ângulos subnotificados sobre o colonialismo.
Nossa equipe editorial sentiu que muitas vezes o fardo dessas difíceis conversas é deixado para as vítimas do colonialismo, então também demos uma plataforma para europeus discutirem abertamente o passado colonial de seu continente, em vez de fugir dele.
As histórias da edição abrangeram vários tópicos e lugares — desde batalhas pela grilagem de terras no Zimbábue e o status da língua inglesa no Paquistão, até a descolonização dos currículos universitários na Bélgica e a descoberta do problema da diversidade no setor de desenvolvimento.
Por tudo isso, o CTN ajudou jornalistas a desvendar seu complexo de salvador branco, escrever sobre o impacto do domínio colonial em suas identidades e reportar como a Europa poderia marcar seus momentos mais sombrios da história.
“Aprender sobre o CTN enquanto trabalhava em minha matéria me incentivou a fazer perguntas, mesmo quando não havia respostas diretas”, diz Teresa O'Connell, uma das colaboradoras da revista. Por meio de uma história pessoal, ela escreveu sobre como, após nove séculos de repressão colonial britânica, os irlandeses começaram a reivindicar sua língua e herança.
“Abraçar a complexidade me tornou mais consciente de meu preconceito ao falar com os entrevistados”, acrescenta O'Connell. “Isso levou a matéria a direções inesperadas.”
Pela primeira vez por meio desta revista, os colaboradores também aplicaram o CTN ao jornalismo visual. Reconhecendo o retrato estereotipado de ex-colônias, visto pelo olhar do homem branco, selecionamos séries de fotos com base em sua capacidade de desafiar essas narrativas. Fotografias históricas, pinturas, desenhos e textos de arquivos públicos foram remixados com elementos contemporâneos em um esforço para descolonizar a lente e emprestar uma certa realidade e visceralidade que o assunto merece.
Na Are We Europe, o CTN nos ajudou a ouvir mais profundamente com a pura intenção de compreender as nossas fontes. Incentivou nossa equipe e colaboradores a desafiar e reconhecer nossos preconceitos inerentes e abraçar a complexidade de uma forma que atraiu nossos leitores.
“Por mais polarizador ou contencioso que seja um tema, quando os jornalistas complicam as narrativas, há uma melodia que emerge do silêncio que existiu por muitos anos, dizem Hofer e Fasciaux. “São as vozes daqueles que desejam desesperadamente e precisam ser ouvidos.”
Priyanka e Inbar são jornalistas freelance baseadas em Bruxelas e foram editoras-chefes da revista Are We Europe: Unsilencing: The Colonialism Issue”.
A imagem principal foi criada por Patrick Waterhouse para a edição sobre colonialismo da