A situação atual do jornalismo no Afeganistão

Aug 4, 2022 em Reportagem de crise
Afghanistan flag

Por duas décadas, os jornalistas no Afeganistão ofereceram ao público notícias essenciais e informação em uma gama de jornais independentes, estações de rádio e redes de TV — um ecossistema de mídia que eles trabalharam duro para construir e fortalecer. Quando o Talibã retornou ao poder, em 2021, tudo mudou em questão de dias.

"Estamos agora olhando para as cinzas daquilo que criamos anos atrás, enquanto o Talibã reprime com uma mão de ferro cada veículo livre", diz Samiullah Mahdi, jornalista de destaque do Afeganistão e agora consultor de programas do ICFJ. "É muito difícil ver como as coisas que você ama ou pelas quais você trabalhou uma vida toda estão sendo destruídas brutalmente." 

Mahdi é o novo editor-chefe da Amu TV, uma plataforma digital de notícias que ele cofundou e que reúne jornalistas que estão no Afeganistão e fora dele para produzir reportagens independentes em farsi e afegão. Vencedor do ICFJ Knight International Journalism Award em 2012, Mahdi indicou outra jornalista afegã, Anisa Shaheed, para o prêmio. Um painel de juízes escolheu Shaheed como uma das homenageadas de 2022, e ela receberá a homenagem no dia 10 de novembro, no Tributo aos Jornalistas do ICFJ

Na entrevista a seguir concedida ao ICFJ, Mahdi descreve a situação dos jornalistas atualmente e o que pode ser feito para ajudar.

ICFJ: Quando o Talibã tomou o poder no ano passado, nós vimos relatos de jornalistas sendo torturados, ameaçados e forçados a abandonar o país. Qual é a situação neste momento? 

Mahdi: Os números falam por si. Cerca de 300 veículos foram fechados desde 15 de agosto de 2021 no Afeganistão. Mais de 60% dos jornalistas perderam seu emprego. Desse total, mais de 85% são mulheres. Mais de 32 prisões e detenções pelo Talibã foram relatadas. Mas muitos outros incidentes ficam sem registro.

Muitos jornalistas foram detidos, torturados e espancados pelo Talibã sem explicação alguma, principalmente durante os primeiros dias e semanas da tomada de Cabul. Em um dos casos amplamente divulgados pela mídia internacional, o Talibã prendeu dois jornalistas do jornal Truce. Depois que eles foram liberados, foram divulgadas imagens de seus corpos espancados pelo Talibã. As cicatrizes dos golpes eram muito brutais. Ninguém nunca deu nenhuma explicação; eles estavam apenas cobrindo uma manifestação de mulheres.  

Esse é o ambiente no momento. O Talibã estava indo às redações diariamente, dando instruções — quais tipos de pautas os jornalistas poderiam cobrir e qual tipo de matéria eles não deveriam passar perto. Agora, em algumas partes, especialmente no Nordeste, eles pedem aos jornalistas que enviem sua programação diariamente para ter aprovação do serviço de inteligência do Talibã. Ninguém critica o Talibã, ninguém pode perguntar a eles sobre corrupção ou sobre seus líderes. Isso deixa a sociedade afegã sem uma mídia livre e informação crítica para entender e analisar a situação.

Você disse que 300 veículos fecharam. Eles estão sendo forçados a fechar?

Em alguns casos é porque o Talibã está os ameaçando. Eles têm medo que o Talibã os puna caso sigam adiante. Em outros casos, tiveram que fechar porque não tinham mais nenhuma receita. E eu acho que algumas redações decidiram ficar em silêncio em vez de contar mentiras e se transformar em porta-vozes do Talibã.

Quais táticas o Talibã está usando para silenciar jornalistas e pressioná-los?

O Talibã tem usado táticas e abordagens diferentes. Eles vão às redações com suas armas empunhadas e orientam os editores e jornalistas sobre o que fazer. Também intimam os editores até o departamento de inteligência e dizem a eles o que fazer. Ou simplesmente ligam ou enviam mensagem aos apresentadores após um programa, pressionando-os: "Por que você fez aquela pergunta? Por que você convidou aquela pessoa?" E daí ameaçam você e sua família e seus entes queridos — essas são as ameaças diretas.

Eles também tentam controlar os donos dos veículos. Assim, se um dono começa a obedecer o Talibã, é como se o Talibã tivesse conseguido basicamente controlar os jornalistas na maioria dos casos. Alguns donos de veículos já começaram a "cooperar" com o Talibã e estão concedendo suas plataformas para servir a agenda e a narrativa do Talibã.

É importante entender a história. Por muitos anos, o Talibã produziu propaganda contra o jornalismo no Afeganistão, chamando [os jornalistas] de espiões do Ocidente. Eles mataram jornalistas ao longo dos últimos 20 anos, incluindo meus colegas, pessoas com quem eu trabalhei por vários anos. Quando eu trabalhava na Rádio Azadi, o braço da Radio Free Europe/Radio Liberty no Afeganistão, eles mataram um dos meus colegas, Eliyas Dayee, na província de Helmand. Ele estava sendo ameaçado pelo Talibã o tempo todo. Eu também estava recebendo ameaças.

Se você recebe uma ligação dizendo "Por que você fez aquela pergunta?" ou "Por que você publicou tal matéria?", é uma ameaça muito, muito séria.

O que você diria aos jornalistas que cobrem o que está acontecendo por lá?

Só uma coisa: foque nas pessoas — as pessoas da vida real. Esse é o jeito mais fácil de contar a história real do Afeganistão. As pessoas estão sofrendo desde que o Talibã tomou o poder. Elas não têm o que comer. Elas não têm acesso à saúde. Elas não têm acesso à educação. Violações aos direitos humanos e assassinatos extrajudiciais estão acontecendo diariamente. Essas são as histórias reais e essa é a face real do Talibã.

Precisamos entender que o Talibã não é a totalidade da realidade do Afeganistão. Mais de 60% da população tem menos de 25 anos. Essa geração de jovens cresceu com um conjunto de valores muito diferentes. Eles experimentaram a liberdade de expressão, direitos das mulheres, direitos humanos e eleições. Eles querem ter um governo representativo eleito. Eles querem ser ouvidos pelo governo e querem viver uma vida normal como qualquer outro cidadão no mundo.

Porém, o que está acontecendo agora é que estamos perdendo outra geração. O Talibã baniu as meninas das escolas. Eles despediram todas as mulheres do governo. Eles raptaram várias ativistas e as torturaram severamente. O Talibã está impondo uma censura severa à mídia. Eles estão envolvidos em assassinatos extrajudiciais. Eles formaram um governo inteiramente de um único grupo étnico.

Sob o Talibã, uma geração foi perdida nos anos 1990 por causa deles. Agora estamos vivendo a mesma coisa.

Qual o tipo de assistência disponível aos jornalistas afegãos no momento?

Algumas centenas de jornalistas conseguiram sair do país. Mas há milhares que ainda estão lá sem esperança no futuro, e eles estão recorrendo a outras pessoas para pedir ajuda. A maioria de nós não pode fazer nada. Isso é muito difícil. Isso também deixa o Afeganistão sem alguns de seus melhores jornais impressos — eles só estão disponíveis online agora.

O que pode ser feito para ajudar os jornalistas afegãos? Tem como fazer isso de uma forma significativa?

Algo que os jornalistas exilados estão fazendo é se conectar com os que ainda estão no país. Jornalistas que estão no país enviam filmagens, matérias e vazamentos para aqueles que estão no exterior para que eles produzam as matérias.

Mesmo assim, o espaço para a livre expressão está encolhendo. As pessoas sentem que estão sendo censuradas mesmo dentro de casa. Elas se sentem sufocadas porque não podem se expressar livremente. Eu fico feliz que o ICFJ tenha lançado um novo programa para ajudar jornalistas exilados para que continuem informando sobre o Afeganistão. Iniciativas assim são incrivelmente importantes para manter vivo o jornalismo no Afeganistão.

Qual poderia ser a solução?

Eu acho que manter a mídia e o jornalismo vivos vai manter as pessoas no Afeganistão vivas. Se quisermos de fato saber o que está acontecendo no Afeganistão no momento, registre a situação e responsabilize o Talibã. Só podemos fazer isso através do jornalismo. Do contrário, as tragédias dos anos 1990 vão se repetir. Deslocamentos em diferentes cantos do país, vinganças e assassinatos vão prevalecer. Apenas jornalistas podem documentar isso e conscientizar sobre o que está acontecendo. Enviar um repórter de um país distante pela primeira vez ao Afeganistão para ficar em Cabul por poucos dias e cobrir uma pauta não vai ajudar muito, porque ele não pode captar a história em sua totalidade. 

Se o mundo quer ajudar a mídia no Afeganistão, ele deve ajudar a mídia local. Isso significa empoderar e dar condições para que jornalistas locais contem suas histórias e as histórias da vida cotidiana no Afeganistão sob o regime do Talibã. Salvaguardar a imprensa livre e a liberdade de expressão no Afeganistão deveria se tornar uma prioridade em qualquer conversa da comunidade internacional com o Talibã.


Foto por Farid Ershad no Unsplash.

Este artigo foi originalmente publicado pela organização-mãe da IJNet, o Centro International para Jornalistas.