Guia jornalístico sobre a história das tarifas

Jul 24, 2025 em Temas especializados
Container ship in water.

Governos taxaram a entrada de bens que cruzam suas fronteiras em boa parte da história da humanidade. As tarifas — impostos cobrados sobre importações e exportações — financiaram impérios, protegeram indústrias nacionais e puniram rivais estrangeiros. Deram início a guerras, destruíram economias e redefiniram alianças.

E, mesmo assim, a guerra tarifária atual entre os Estados Unidos e o mundo não se encaixa bem em nenhum desses velhos moldes. Em vez de ser uma ferramenta para nutrir a indústria nacional ou encher os cofres do governo, as tarifas estão sendo aplicadas agora como armas em uma disputa crescente pelo poder global e domínio econômico. 

"Estamos testemunhando uma mudança drástica da ordem econômica como um todo e do sistema comercial baseado em regras que está em vigor desde 1945", diz Robert Blecker, economista da Universidade Americana. Em uma aula para os estudantes de Jornalismo Econômico Global da Universidade Tsinghua University, ele disse que, no lugar desse antigo sistema, há agora "uma guerra hobbesiana de todos contra todos", referindo-se ao filósofo social e político inglês do século XVII segundo quem as pessoas são inerentemente egoístas.

Com o presidente dos EUA mirando na China como o principal alvo de sua ofensiva tarifária global massiva, os riscos aumentaram ainda mais, sinalizando um aprofundamento de uma ruptura que poderia remodelar a economia global por décadas. "A China tem que fracassar — Trump sabe disso", tuitou Benny Johnson, influenciador pró-Trump, no dia 10 de abril para os seus 3,7 milhões de seguidores. "Isso é mais do que uma simples guerra comercial."

Trump começou sua guerra comercial em expansão tão logo assumiu o mandato em 20 de janeiro, ao mirar no México e Canadá, aliados regionais. Em 2 de abril, tornou global a guerra tarifária — data apelidada por ele de "Dia da Libertação" — com taxação massiva de várias jurisdições, incluindo ilhas inabitadas. Após recuar temporariamente em razão de uma queda aguda nos mercados de ações dos EUA e do mundo, Trump retomou a pressão tarifária no início de julho com cartas diárias publicadas nas redes sociais, tendo como alvo parceiros comerciais que provocaram sua ira, do Brasil à União Europeia, México e Mianmar. As razões voláteis do presidente para a aplicação das tarifas foram muito além de desculpas econômicas tradicionais. Por exemplo, ele ameaçou o Brasil por perseguir seu amigo próximo, o ex-presidente Jair Bolsonaro, por armar um golpe fracassado na tentativa de manter-se no poder após perder a reeleição.   

Trump acredita que suas ameaças vão convencer países pelo mundo a acompanharem o Reino Unido e o Vietnã para negociar pactos comerciais em termos favoráveis ao governo dos EUA. Mas a maioria dos economistas, historiadores e especialistas em política internacional preveem mais caos econômico.

"Sob a gestão de Trump, a diplomacia comercial dos EUA deixou de ser uma ferramenta de engajamento e se tornou uma arma de espetacularização", escreveu recentemente o analista de relações internacionais Iran Khalid no The Hill. 

Por mais que as ações de Trump agradem os seus apoiadores mais ferrenhos nos EUA, muitos analistas apartidários dizem que as paixões desencadeadas pelo vai-e-vem tarifário do presidente — que elevaram as taxas do comércio global ao nível mais alto em um século — ameaçam a estabilidade da economia mundial.

"O governo Trump está brincando com fogo", diz Joe Brusuelas, economista-chefe do RSM.

Da Mesopotâmia a McKinley: uma breve história das tarifas

Para entender por que a obsessão tarifária de Trump é historicamente incomum, precisamos primeiro entender como as tarifas evoluíram.

A começar por essa anomalia histórica: Trump é o primeiro líder de estado a usar as tarifas para desestabilizar a economia global ou criar caos econômico como estratégia política. Vamos dar uma olhada nos livros de história... 

As tarifas — impostos sobre bens importados — são tão antigas quanto o comércio entre nações. As primeiras tarifas eram basicamente pedágios. Na Mesopotâmia, comerciantes que transportavam bens entre cidades-estado pagavam impostos em portões e portos. A Atenas antiga impunha taxas alfandegárias sobre bens que chegavam em seus portos; cidades europeias medievais taxavam comerciantes que passavam pelos portões das cidades. Pequenos reinos coletavam impostos em rios e pontes, não por estratégia econômica, mas porque esses governantes precisavam de dinheiro.  

O mercantilismo, a filosofia econômica dominante entre os séculos XVI e XVIII, deu às tarifas um propósito político. Sob o pensamento mercantilista, a riqueza nacional era medida pelo acúmulo de ouro e prata. Exportar bens trazia dinheiro; importar bens drenava o dinheiro. Portanto, tornaram-se comuns tarifas pesadas sobre as importações.

Um exemplo foram os Atos de Navegação britânicos do século XVII. Para enriquecer a si mesma e enfraquecer os rivais, a Grã-Bretanha exigia que os bens importados para suas colônias chegassem via navios britânicos, na maioria das vezes com tarifas que desestimulavam comprar de concorrentes estrangeiros.

Tarifas: ferramenta de política dos EUA

As tarifas também foram essenciais para o desenvolvimento inicial da economia dos EUA. Após a independência, o país, carente de um imposto de renda, usou as tarifas como sua primeira fonte de receita. Conforme argumentou Alexander Hamilton, primeiro secretário do tesouro do país, em seu "Relatório sobre Manufaturas" de 1791, as tarifas podiam proteger a incipiente indústria dos EUA da dominante produção britânica.  

"Em países onde há muita riqueza privada, a receita pública pode derivar, em um grau considerável, das tarifas", escreveu Hamilton. "Mas em um país onde há pouco capital, impostos sobre o consumo […] são mais convenientes."

Políticos frequentemente adotam tarifas, mas elas são amplamente desprezadas por capitalistas do livre-mercado. Adam Smith, em seu clássico "A Riqueza das Nações", de 1776, escreveu que as tarifas fomentam a ineficiência econômica e complacência nas indústrias protegidas pelo mecanismo. Dois séculos depois, o economista Milton Friedman, vencedor do Prêmio Nobel, reclamou que as "tarifas protegem uns poucos produtores às custas de uma quantidade muito maior de consumidores". 

Nas décadas que se seguiram até a Guerra Civil dos EUA, as tarifas se tornaram um elemento de conflito político. A chamada "Tarifa das Abominações", de 1828, que aumentou de forma aguda as taxas sobre matérias-primas e produtos manufaturados, enfureceu os políticos do sul do país e as elites econômicas, que se viram vítimas do poder industrial do norte. Isso desencadeou a Crise da Nulificação, um confronto constitucional entre a Carolina do Sul e o governo federal sobre os direitos dos estados.  

A plataforma do Partido Republicano de Abraham Lincoln em 1860 era explicitamente protecionista e ele argumentava que as tarifas "asseguravam ao trabalhador dos EUA as recompensas integrais de sua indústria". Lincoln refletia a mentalidade mundial. No mundo todo, as tarifas definiram o comércio até a chegada do século XX. Muitos países usaram as tarifas para promover "indústrias nascentes", um conceito formalizado pelo economista alemão Friedrich List nos anos 1840. Ele argumentava que o protecionismo era necessário para permitir que indústrias nos países em desenvolvimento alcançassem as economias mais avançadas.

O herói histórico de Donald Trump, William McKinley, criou uma guerra tarifária em 1890 com o vizinho Canadá e a Europa. Quando congressista em Ohio, ele criou uma lei que aumentava as tarifas em 50%, a pedido dos industriais dos EUA conhecidos como "barões ladrões". A depressão econômica e a reação política que se seguiram custaram aos republicanos 93 cadeiras no Congresso e a Casa Branca nas eleições de meio de mandato em 1892. No cargo de presidente quatro anos depois, McKinley encontrou outra forma de usar a receita tarifária: financiar uma guerra com a Espanha que criou um império dos EUA de Porto Rico às Filipinas.

Rumo a um comércio mais livre

Nos EUA, a criação do imposto de renda em 1913 deu fim à necessidade de usar a receita tarifária para financiar os gastos do governo. Mas, com o mundo mergulhando na Crise de 1929, o presidente Herbert Hoover sancionou a infame Lei Tarifária Smoot-Hawley, que elevou as tarifas dos EUA em mais de 20.000 bens, provocando retaliações de outros países e um colapso global do comércio. As tarifas foram consideradas culpadas por aprofundar a crise mundial e incitar a ascensão do fascismo. Após a devastação da Segunda Guerra Mundial, o mundo mudou em direção a menos barreiras comerciais e menos tarifas.

No mundo pós-guerra, os países estabeleceram uma nova ordem tarifária. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (conhecido pela sigla em inglês GATT), assinado em 1947, buscou reduzir gradualmente as tarifas e outras barreiras. Ao longo das décadas seguintes, por meio de rodadas sucessivas de negociação do GATT, as tarifas caíram drasticamente entre os países desenvolvidos. Nos EUA, as tarifas médias caíram de cerca de 20% nos anos 1930 para menos de 5% nos anos 1990. No mundo todo, o padrão foi semelhante. O comércio explodiu, seguido de prosperidade (embora de forma desigual).

Este período de liberalização culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, dando ao mundo o primeiro conjunto abrangente e aplicável de regras. As tarifas adotaram uma tendência de queda, o comércio global adotou tendência de alta e a pobreza extrema caiu significativamente no mundo todo. Os benefícios da nova ordem mundial foram generalizados, mas houve muitos perdedores, particularmente em países mais ricos como os EUA e em países estagnados como a Rússia, onde instalações fabris foram fechadas ou se mudaram para outros lugares. 

A história da China se encaixou perfeitamente nessa narrativa — por um tempo. Depois de décadas de isolamento, Pequim passou a fazer parte da OMC em 2001, prometendo reformas em troca de acesso ao mercado global. Líderes dos EUA à época acreditavam que integrar a China ao sistema de comércio internacional encorajaria a liberalização política e vincularia o país às normas internacionais. O sistema econômico chinês foi liberalizados em certo grau, mas o mesmo não ocorreu com seu sistema político. 

Os consumidores dos EUA se beneficiaram da enxurrada de bens chineses de baixo custo, de brinquedos a torradeiras, tênis e painéis solares. Ao mesmo tempo, líderes políticos dos EUA de ambos os partidos acusavam a China de ignorar leis do comércio internacional, rompendo acordos bilaterais feitos para abrir mercado para produtos e serviços dos EUA, violando direitos humanos e roubando propriedade intelectual. A China acusava os EUA de intimidação e interferência em seus assuntos domésticos.

O começo do fim da era de globalização veio com a eleição de Trump em 2016. Ele deu início a uma guerra comercial com a China em 2018 ao impor US$350 bilhões em tarifas sobre bens chineses. A China retaliou com suas próprias tarifas, igualando as tarifas dos EUA praticamente dólar por dólar. De repente, duas das maiores economias do mundo estavam presas em uma troca de retaliações que afetou setores da agricultura à tecnologia.

A eleição de um presidente democrata em 2020 fez pouco para mudar a trajetória de desglobalização. Joe Biden manteve muitas das tarifas de Trump e acrescentou outras novas sobre veículos elétricos e células solares. Trump, então, voltou ao governo em 2025, declarando que "tarifas" era sua palavra preferida. Ele não estava brincando. 

Em comparação a disputas tarifárias anteriores, como a Smoot-Hawley de 1930 ou as tensões EUA-Japão dos anos 1980, a situação atual é bem mais expansiva, bem mais carregada ideologicamente e muito mais interligada com preocupações militares e estratégicas.

Em 1930, as tarifas focavam principalmente em protecionismo em meio a uma depressão global. Nos anos 1980, os embates com o Japão focavam no acesso a mercados, com eventuais negociações de acordos. Hoje, as tarifas são instrumentos em uma luta sobre quem controla as tecnologias e cadeias de suprimentos do século XXI. Também são um instrumento contundente usado por um único homem para exercer poder, Donald Trump, que tem queixas contra países por razões pessoais, econômicas, efêmeras e táticas.  

O novo capítulo dessa história vai ser escrito se Trump for bem-sucedido e pelo modo como o mundo vai reagir às suas ameaças.


Este texto foi produzido em colaboração com o programa de Jornalismo Econômico Global da Universidade Tsinghua, uma parceria entre o ICFJ, a Universidade Tsinghua e a Bloomberg News.

Foto por Andreas Dittberner via Unsplash.