Cortes de ajuda dos EUA limitam acesso a dados vitais na África

Jun 23, 2025 em Jornalismo de dados
A doctor filling out a health form

Cientistas e pesquisadores que trabalham com saúde global estão clamando para que seja restaurado o programa de Pesquisas Demográficas e de Saúde (DHS na sigla em inglês), que monitora dados de saúde em mais de 90 países de renda baixa e média.

Em seus 40 anos de história, a iniciativa produziu quase 2.000 bancos de dados que serviram de base para mais de 300 estudos e 6.000 artigos acadêmicos. Para muitas organizações que contam com esses dados, "a ausência deles cria um vácuo na infraestrutura no desenvolvimento baseado em evidência", de acordo com o Data-Pop Alliance.

O DHS, financiado pela USAID, foi vítima dos cortes na ajuda estrangeira dos EUA ordenados em janeiro pelo governo Trump. Um banner vermelho no alto do site do projeto informa: "Devido à revisão dos programas de assistência estrangeira dos EUA em curso, o DHS está pausado no momento. Não podemos responder a nenhuma solicitação de dados ou outros pedidos por agora. Contamos com a sua paciência." 

Este é um duro golpe para jornalistas africanos, como o premiado jornalista de saúde Henry Mugenyi, que trabalha na NBS Television em Uganda. "O DHS é uma das poucas fontes de dados consistentes, de credibilidade e acesso público em que jornalistas, pesquisadores e a sociedade civil podem confiar", diz. "Sem ele, perdemos uma base de referência vital, principalmente para pautas de prestação de contas em torno dos compromissos de Uganda com os objetivos de desenvolvimento sustentável ou da cobertura universal de saúde."

Entendendo o DHS

Lançado pela USAID em 1984, o DHS fez sua primeira pesquisa nacional em El Salvador um ano depois, ao coletar dados sobre fertilidade, mortalidade infantil e planejamento familiar, expandindo a Pesquisa Mundial sobre Fertilidade.

A partir dessa pesquisa inicial, o DHS focou inicialmente na coleta de dados sobre a saúde de mulheres e crianças em torno de questões como contracepção, gravidez, cuidado pós-natal, imunização de crianças, entre outras. Ao longo dos anos, foram adicionadas questões sobre violência conjugal, saúde masculina, comportamento, mutilação genital feminina e conhecimento sobre o HIV.

O programa foi pioneiro no desenvolvimento de um braço de pesquisa sobre empoderamento feminino, ao mesmo tempo em que serviu como uma plataforma para testar diferentes abordagens de pesquisa e mensuração. Pesquisadores, formuladores de políticas e jornalistas passaram a contar com as pesquisas do DHS sobre os países que são foco do programa e que são conduzidas aproximadamente a cada cinco anos em colaboração com órgãos estatísticos dos países em questão.

Governos usaram dados dessas pesquisas para identificar áreas de preocupação e estabelecer programas nacionais para tratá-las. Por exemplo, o mais recente plano estratégico de saúde da Tanzânia cita a pesquisa do DHS sobre o país 48 vezes em relação a dados sobre taxa de natalidade, uso de contraceptivos e prevalência de parasitas de malária em crianças menores de cinco anos, ao mesmo tempo em que também menciona a expectativa dos dados da pesquisa previstos para 2026 para dar continuidade aos esforços de planejamento.

Consequências

O governo Trump encerrou oficialmente o DHS no fim de fevereiro "por conveniência do governo dos EUA". De acordo com a Brookings Institution, o fim do programa colocou uma série de pesquisas em andamento sob risco de serem perdidas ou nunca divulgadas publicamente:

  • Países que tiveram a mais recente rodada de pesquisa comprometida: Angola, Burundi, República do Congo, República Democrática do Congo, Etiópia, Guiné, Indonésia, Malawi, Mali, Nigéria, Filipinas, Ruanda, África do Sul, Tajiquistão, Timor-Leste, Togo, Zâmbia e Zimbábue.
  • Países cujas pesquisas estavam próximas de serem concluídas: Indonésia, Malawi, Nigéria e Zimbábue.
  • Países cuja pesquisa mais recente está pronta, mas ainda não foi divulgada publicamente: Mali e Tajiquistão.
  • Países onde estavam sendo realizadas pesquisas menores e especializadas (por exemplo, pesquisas sobre indicadores de malária e sobre avaliação do fornecimento de serviços de saúde): Gana, Quênia, Nigéria, Ruanda, Uganda e Nepal.

Consequências para jornalistas africanos

Jornalistas desempenham uma função fundamental na disseminação de informações das pesquisas do DHS. Eles identificam tendências, anomalias e melhorias em indicadores de saúde, destacando-os nas notícias que chegam até o cidadão médio. Eles também usam as pesquisas frequentemente como apoio para a verificação de fatos.

Após a divulgação da Pesquisa Demográfica e de Saúde do Quênia em 2022, jornalistas destacaram a queda na taxa de fertilidade do país. Em 2024, o jornalista Mustapha K. Darboe desmentiu uma alegação segundo a qual não existia mutilação genital feminina na Gâmbia depois do legislativo do país apresentar um projeto de lei descriminalizando a prática. De acordo com uma pesquisa do DHS feita em 2019 e 2020, cerca de cinco a cada dez meninas com menos de 14 anos e mais de sete a cada dez mulheres entre 15 e 49 anos na Gâmbia já passaram por mutilação genital. O projeto acabou sendo rejeitado.

Mugenyi já usou amplamente os dados do DHS em seu trabalho de reportagem, principalmente sobre saúde materna, prevalência do HIV, nutrição infantil e acesso ao planejamento familiar em Uganda. "Uma matéria que se destaca é uma que fiz em 2023 sobre mortalidade materna em áreas rurais", diz. "Os dados do DHS ajudaram a mostrar disparidades entre distritos no cuidado pré-natal e na assistência qualificada no parto, dando peso à matéria na hora de falar com formuladores de políticas e ONGs. Sem esses dados, teria sido difícil provar a escala da desigualdade no acesso à saúde além dos relatos pessoais."

Edris Kiggundu, jornalista ugandense e CEO do Bbeg Media, conta com os dados do DHS devido à cobertura abrangente dos mesmos em todas as áreas geográficas do país. "Descontinuar o programa afetaria uma das principais fontes de informação que jornalistas têm para cobrir problemas socioeconômicos", diz. 

Yusef Taylor, editor do Askanwi Media, na Gâmbia, compartilha sentimento semelhante. "Se o DHS for pausado e a Gâmbia perder recursos para a realização desse tipo de pesquisa, vai haver um impacto significativo no nosso trabalho de reportagem porque não vamos conseguir informar dados confiáveis sobre emprego, população ou outros assuntos críticos."

Fontes alternativas de dados

Embora o DHS realize as pesquisas mais abrangentes do seu gênero, jornalistas podem consultar dados coletados pelas seguintes organizações que fazem pesquisas semelhantes:

Além disso, eu fiz uma compilação abrangente de mais fontes de dados aqui.


Foto por Laura James via Pexels.