Durante o Festival Internacional de Jornalismo, três veículos indianos trouxeram para o debate alguns dos conceitos, estratégias e práticas que estão testando com e nas suas comunidades. Considerando-se o enfrentamento a uma escassez generalizada de recursos e as medidas governamentais que comprometem a liberdade de imprensa, como leis que perseguem a mídia digital na Índia.
"Primeiro: você, como um veículo local, é muito diferente de um veículo tradicional de alcance nacional. Você não consegue replicar o que eles fazem", disse Dhanya Rajendran, editora do site indiano The News Minute. Quando Rajendran criou o veículo, em 2014, ela aprendeu essa diferença do jeito mais difícil, à medida que a equipe foi deixando de lado o formato de notícias de última hora e se voltando para uma cobertura feminista com nuances.
O lembrete de Rajendran foi só um dos muitos insights compartilhados no painel organizado pelo Instituto Internacional de Imprensa (IPI, na sigla em inglês) sobre como o jornalismo local está remodelando a si mesmo. A discussão concentrou-se em experiências fora da mídia da América do Norte e da Europa Ocidental, destacando como esses profissionais estão agarrando oportunidades e enfrentando desafios para desenvolver projetos jornalísticos que realmente engajam e servem às suas comunidades.
Organizado no âmbito do relatório do IPI "Guia de Sobrevivência da Mídia Local 2022", que coletou ideias e estudos de caso de veículos locais em regiões emergentes, o painel também recebeu as editoras Cheri-Ann James do The Daily Dispatch, da África do Sul, e Ana Carolina Alpirez, do Ojoconmipisto ("Cuidado com o meu dinheiro"), da Guatemala.
@AnaAlpirez, founder & editor of @_ojoconmipisto in #Guatemala, discusses how her digital media outlet promotes citizen participation & focuses on the accountability of public funds in local areas - which has led to vital tip offs for investigative reporting on corruption. pic.twitter.com/nK8c3YLgUq
— IPI-The Global Network for Independent Journalism (@globalfreemedia) April 7, 2022
"O jornalismo local é o setor mais atribulado do ecossistema de mídia, mas é também o mais animador porque é onde a inovação está acontecendo" disse Jacqui Park, principal autora do relatório. Confira abaixo algumas lições do painel:
Local não significa (apenas) de porte pequeno
A província do Cabo Oriental, na África do Sul, área de cobertura do The Daily Dispatch, abriga uma população de 6,6 milhões; o The News Minute fica em Bangalore, mas cobre cinco estados do sul da Índia, somando mais de 200 milhões de pessoas.
À primeira vista, estes números não sugerem a ideia de "local" — mas de acordo com o relatório do IPI, o jornalismo local é definido pela forma como ele serve sua comunidade. Se um veículo está tratando das necessidades de um grupo específico de pessoas, empoderando-as ao ouví-las e dando a elas as ferramentas para entender melhor o mundo, ele pode ser considerado local, não importa o tamanho de sua audiência.
"Um jornal local é um facilitador cultural entre cidadãos e instituições" disse Marianna Bruschi, coordenadora de desenvolvimento digital na GEDI, Itália, durante um outro painel sobre construção de comunidade e jornalismo local: as formas de se fazer isso são tão variadas quanto as audiências que o jornalismo local representa.
Notícias com e para a comunidade
Desde o seu lançamento como um projeto jornalístico nativo digital, em 2013, o Ojoconmipisto se enraizou profundamente em sua comunidade como uma fonte local sobre a gestão do dinheiro público na Guatemala. "Grandes casos de corrupção começam no nível local", diz Alpirez, que reforçou a importância de envolver cidadãos e jornalistas locais na mesma missão.
"Nós criamos o portal guatecompras, onde os cidadãos podem ver documentos sobre gastos de funcionários municipais. Nós os ensinamos [como usar essas ferramentas] e promover a participação cidadã, porque se eles têm a informação, podem tomar decisões melhores", acrescenta.
O Ojoconmipisto também capacita jornalistas rurais em jornalismo de dados, permitindo a produção de notícias confiáveis para comunidades carentes e estimulando a participação cívica. "Os cidadãos são os que vivem nessas áreas, são os que sabem o que acontece lá", diz Alpirez.
Como um veículo local, é importante ter raízes na realidade geográfica e social, e identificar e ouvir a sua audiência. Desse modo, plataformas de jornalismo local podem aumentar a credibilidade e ganhar a confiança dentro das comunidades. Porém, especialmente em países que têm uma grande variedade de idiomas regionais, isso não é o bastante para quebrar tais barreiras. "Eu quero muito fazer vídeos e podcasts em outras línguas, já que uma grande parte da população não sabe inglês, diz Rajendran.
"Dinheiro é um problema", continua. "Nós servimos quatro estados e são quatro idiomas. Não podemos começar com uma e deixar as outras três para trás."
Financiando o jornalismo local: sobreviver ou vencer?
Nos últimos anos, o jornalismo local provou ser um serviço essencial para combater a desinformação e servir comunidades carentes. Mesmo assim, ele ainda sofre para encontrar modelos de negócios viáveis que possam garantir a qualidade e a continuidade do trabalho, especialmente para aqueles que não podem pagar para transpor o paywall.
"Nós sempre fornecemos as notícias de graça [online]. Como mudamos a mente das pessoas? É aí que a estratégia hiperlocal entra em jogo: nós damos a elas notícias sobre elas mesmas. Estamos vendo aos poucos algumas mudanças, mas nossa receita principal ainda vem de anúncios", diz James.
No entanto, programas de membros e anúncios não são ideais para qualquer comunidade e veículos locais tiveram que encontrar formas alternativas de financiar seu trabalho. Por exemplo, além das reportagens, o The News Minute realiza cursos, parcerias com ONGs e dá consultoria de mídia.
A filantropia é uma das opções mais comuns para a mídia local, que na maioria dos casos sobrevive à base de subsídios de fundações, como a Open Society Foundation, o Centro Internacional para Jornalistas e a Hivos.
"Noventa por cento é coberto por subsídios [e] 10% é financiado pelo Laboratorio de Medios, com quem nós organizamos treinamentos, parcerias e consultorias", disse Alpirez. Porém, painelistas e outros especialistas de mídia concordam que depender de subsídios não é sustentável no longo prazo. Por outro lado, o financiamento governamental nem sempre está disponível e, quando está, pode ser uma possível forma de controle editorial se não houver proteção.
"Nosso trabalho não termina com a reportagem. É um projeto contínuo voltado para conectar veículos locais no mundo todo para que eles aprendam uns com os outros. Muitas pessoas estão trabalhando sozinhas e é fundamental compartilhar as melhores práticas e destacar as diferentes formas de criar inovação e sustentabilidade", concluiu Park.
Durante um outro painel sobre visibilidade da mídia, Sameer Padania, diretor da Microscope Consultancy, refletiu sobre como os subsídios podem ser parte da solução, mas não a solução em si. "A quantidade de dinheiro vinda deles é baseada na sobrevivência: nós queremos sobreviver ou queremos vencer?", disse Padania. Na luta pelo jornalismo independente e centrado nas pessoas, a resposta é clara — simplesmente sobreviver não é o bastante.
As sessões mencionadas neste artigo e todas as outras realizadas no Festival Internacional de Jornalismo estão disponíveis online aqui.
Foto cedida por Syced via Wikimedia Commons.