Repórteres que cobriram invasão do Capitólio analisam a invasão do 8 de janeiro em Brasília

Feb 20, 2023 em Reportagem de crise
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Em 8 de janeiro, poucos dias depois da transferência de poder para o presidente Lula, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram o Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Dentre suas demandas, os manifestantes pediam um golpe militar para tirar Lula da presidência. 

Vídeos dos ataques golpistas espelham bastante a tentativa de golpe de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, quando apoiadores do então presidente Donald Trump interromperam a certificação das eleições em uma tentativa de evitar a transferência pacífica de poder para o presidente Joe Biden.

Após a insurreição de 8 de janeiro no Brasil, os jornalistas do país precisam responder muitas das mesmas perguntas encaradas pelos seus colegas nos Estados Unidos dois anos atrás. Como aqueles que instigaram os atos vão ser responsabilizados? Como lutamos contra as vastas quantidades de desinformação em torno dos eventos? Qual a melhor forma de comunicar aos leitores a severidade da ameaça à democracia? 

Para responder a essas perguntas, eu conversei com Meg Kelly, repórter de vídeo da equipe de vídeo forense do Washington Post, e Ryan Reilly, repórter de justiça da NBC News. Ambos cobriram os acontecimentos de 6 de janeiro nos Estados Unidos e seus desdobramentos.

A seguir estão os conselhos que eles têm para os jornalistas no Brasil e para quem cobre extremismo antidemocrático.

Cobertura das consequências da insurreição

Logo após a insurreição nos Estados Unidos, a equipe de vídeo forense de Kelly no Washington Post criou uma linha do tempo visual dos eventos do dia. Eles usaram filmagens postadas online e feitas por repórteres para dar uma sequência aos eventos, verificando os registros de data e hora dos vídeos para ver exatamente quando os manifestantes invadiram o Capitólio e o quão perto eles estiveram de conseguir chegar aos congressistas.

Nos meses que se seguiram, Kelly e sua equipe passaram a criar documentação visual de questões mais complexas, por exemplo, como as forças de segurança tentaram conter o motim. Em uma matéria, Kelly foi atrás de comunicações da polícia no dia da insurreição, que revelaram falhas de planejamento que permitiram aos manifestantes invadir o Capitólio.

Na NBC News, Ryan Reilly focou na resposta do sistema de justiça ao 6 de janeiro. "Uma das coisas que ficou evidente nos primeiros dias, que eu teria em mente se estivesse investigando o que está acontecendo no Brasil, é que nós não sabíamos de fato a extensão total da quantidade de pessoas que uma potencial investigação criminal poderia envolver", diz. Por exemplo, nos primeiros dias depois da invasão, diz Reilly, estimava-se que cerca de 800 pessoas tinham entrado no Capitólio, quando na realidade os números passavam de 2.000.

A escala no Brasil é ainda maior: somente o dia dos ataques resultou em pelo menos 1.500 prisões. Mais de dois anos depois da invasão nos Estados Unidos, somente 950 pessoas foram acusadas. Da mesma forma, o governo brasileiro estima que o número de manifestantes que invadiram as sedes dos Três Poderes chega a cerca de 5.000, em comparação à estimativa de 2.000 que entraram no Capitólio

Tanto Kelly quanto Reilly também enfatizaram as diferenças importantes entre os ataques de 6 de janeiro e 8 de janeiro. No caso do 6 de janeiro, os manifestantes queriam interromper a certificação das eleições; no Brasil, a insurreição aconteceu depois do presidente Lula já ter tomado posse. O levante dos Estados Unidos também foi mais violento, já que a multidão entrou em combate com a polícia, e cinco mortes foram atribuídas à violência.

Combate à desinformação

A desinformação inspirou a tentativa de golpe de 6 de janeiro nos Estados Unidos e também se proliferou online logo após a insurreição, com o objetivo de criar confusão em relação ao que de fato aconteceu. "O que nós chamamos de 6 de janeiro [se deve] a teorias de conspiração", diz Reilly. "E agora tem um monte de teorias da conspiração sobre o 6 de janeiro em si." 

Falsas alegações segundo as quais "agentes do Estado paralelo", como o FBI, foram responsáveis e insinuações de que os ataques foram na verdade encenados por grupos antifascistas eram comuns nos dias e semanas que se seguiram ao ocorrido. A desinformação desviou a culpa do ex-presidente Donald Trump na instigação dos ataques ao mesmo tempo em que retratou os eventos como uma conspiração contra Trump e seus apoiadores. Tentativas semelhantes estão em curso agora no Brasil, com canais de TV pró-Bolsonaro, como a Jovem Pan, dando espaço para figuras que promovem desinformação.

Uma medida que jornalistas podem tomar para combater a desinformação é rotular corretamente manifestantes e insurrecionalistas conforme as ações realizadas no dia dos ataques. "Nós estávamos confortáveis em dizer que as pessoas que entraram no Capitólio se envolveram com o motim", diz Kelly. Ser específico na linguagem é igualmente importante, ela acrescenta. "Nós não achamos que podíamos dizer que todas as pessoas que entraram no Capitólio tinham crenças extremas. Então na maioria das vezes a gente falava algo como 'um apoiador de Trump' ou 'uma pessoa que achava que a eleição tinha sido fraudada.'" 

Apontar para evidências concretas é outra forma vital de refutar alegações alimentadas por desinformação, especialmente ao se comunicar com pessoas que têm menos confiança na mídia. "Conte com evidências em vídeo com registro de hora e data específicos e fotos que têm metadados claros – seja capaz de juntar todas essas peças para as pessoas de modo que não seja a lembrança de alguém [ou] algo que uma fonte de inteligência te disse", explica Kelly. "Descobri no meu trabalho que usar essas peças de evidência concreta pode ser uma forma de se conectar de verdade com as pessoas."

Assegurando a responsabilização

Evitar futuras ações antidemocráticas requer responsabilizar quem organizou os atos. Jornalistas desempenham um papel fundamental nisso. "Eu definitivamente sugeriria que os jornalistas brasileiros ficassem de olho nas forças implícitas em termos de retórica nas redes sociais [que conduziram] até o dia anterior [aos ataques]", diz Kelly. "Comece a pensar sobre quem eram os líderes de diferentes grupos envolvidos em levar adiante os protestos e alguns dos momentos mais violentos."

Jornalistas também devem investigar o papel desempenhado por forças de segurança e militares. Muitos dos manifestantes dos Estados Unidos pertenciam a um desses dois grupos. "Agentes da ativa da marinha foram ao Capitólio. Policiais – em atividade e aposentados – estavam envolvidos neste ataque de 6 de janeiro", diz Reilly.  

No Brasil, muitos policiais simplesmente ficaram parados enquanto os manifestantes atacavam os prédios. "Eu acho que isso é algo em que eu realmente estaria interessado – [a polícia] minimizando a ameaça por questões políticas ou basicamente ficando do lado das pessoas que invadiram os prédios porque compartilhavam o mesmo ponto de vista político", diz Reilly.  

Por fim, manter a atenção do público nos riscos que os organizadores dos ataques representam para a democracia é fundamental para evitar a situação que Reilly descreve como um "sapo em água fervente", na qual eventos cada vez mais antidemocráticos desaparecem rapidamente da visão do público. Este é o caso principalmente quando os que têm menos poder e responsabilidade pelos golpes são presos e julgados, enquanto aqueles com mais responsabilidade escapam impunes de seus atos. 

Por exemplo, a maioria dos que foram acusados nos Estados Unidos por invadir o Capitólio foram considerados culpados somente por crimes de contravenção, como conduta desordeira. Enquanto isso, investigações do Congresso e do conselho especial sobre os mentores intelectuais e instigadores do golpe ainda não levaram a nenhuma acusação criminal.

"Há essa tentação de seguir adiante", diz Reilly. "Mas isso só te mostra o que o poder consegue fazer. São as pessoas que estão no lado mais fraco da corda que estão sofrendo as consequências do que aconteceu naquele dia." 


Foto por Mateus Campos Felipe via Unsplash.


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Jornalista freelancer

Devin Windelspecht

Devin Windelspecht é editor da Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet). Antes de trabalhar na IJNet, ele era jornalista freelancer e cobria preservação e direitos humanos.