De fotógrafos que capturaram imagens de famílias de agricultores e imigrantes desalojadas durante a Grande Depressão - como a foto "Mãe Migrante", de Dorothea Lange – a estudos como o livro de Michael Harrington, "The Other America (A Outra América)", que analisou a pobreza nos EUA durante os anos 1960, reportar sobre a pobreza extrema e questões de classe já foi uma marca distintiva do jornalismo dos EUA. Para dar essa ênfase, a cobertura jornalística dependia do financiamento de agências federais da época do New Deal ou de movimentos sociais massivos para obter infraestrutura.
Nas décadas seguintes, essa infraestrutura essencial se perdeu junto com a mudança ideológica que culpou os cidadãos pelo aumento da pobreza, em vez do ambiente econômico e social mais amplo. O Economic Hardship Reporting Project (EHRP) está tentando cobrir essa lacuna ao focar na cobertura da desigualdade, classe e pobreza atual nos Estados Unidos, e também ao dar a repórteres e fotógrafos que passaram pela pobreza uma plataforma para compartilhar suas histórias.
Ao mesmo tempo em que luta pela mudança social, o EHRP também busca produzir conteúdo com sensível às questões de classe e oferecer estabilidade econômica para seus colaboradores, mudando, dessa forma, as relações dentro do jornalismo.
Quem cobre a pobreza?
Criado em 2012 pela jornalista e ativista política Barbara Ehrenreich, o EHRP busca amplificar as vozes da população pobre nos EUA e mudar o debate sobre a pobreza no país. A organização sem fins lucrativos apoia repórteres e fotógrafos que passaram pela pobreza e leva suas histórias para a audiência da grande mídia por meio de parcerias com grandes veículos –The New Yorker, The Guardian, The New York Times e a National Public Radio, para mencionar alguns.
O trabalho que o projeto faz é inspirado nos famosos jornalistas "fuçadores" da era Progressista, que revelavam corrupção e crimes corporativos ao mesmo tempo em que conscientizavam sobre sobre pobreza e condições de trabalho perigosas. Também é influenciado por histórias orais dos anos 1960 e 1970, que registravam os relatos de pessoas comuns sobre grandes eventos na história dos Estados Unidos. O EHRP ainda adota a tradição da reportagem de esquerda, ao mesmo tempo em que inclui vozes historicamente deixadas de fora dessa forma de jornalismo.
"Parte do ímpeto desse projeto é: quem vai contar as histórias sobre instabilidade econômica agora? E se isso pudesse refletir mulheres, negros e pessoas com inconformidade de gênero que possam participar da cobertura sobre o tema e também terem apoio financeiro adequado?", diz Alissa Quart, diretora executiva do EHRP.
O EHRP não só mostra um lado diferente da imagem dos EUA como uma sociedade rica - destacando a quantidade de pessoas que não conseguem arcar com cuidados e direitos básicos como alimentação, habitação e saúde, por exemplo - como também funciona como uma plataforma para grupos subrepresentados. Os colaboradores reportam sobre os EUA em projetos escritos, audiovisuais, fotográficos e de áudio. A cobertura do EHRP foca na experiência de se viver na pobreza (e suas causas estruturais) que há muito tempo foi esquecida pela grande mídia. As matérias vão desde suicídio entre agricultores em situação precária até a experiência devastadora de amar um presidiário.
Mudando o ecossistema de mídia
Quart, conhecida por seus trabalhos de jornalismo e poesia que abordam a desigualdade, espera que o EHRP possa mudar as hierarquias existentes que retratam o jornalismo como uma profissão de elite para uma audiência de elite.
"O que mais me entusiasma é pensar em conseguirmos mudar o ecossistema de mídia, e quando as pessoas começarem a copiar a gente e contratarem repórteres da classe trabalhadora ou escreverem muito sobre desigualdade. Minha colega Ray Suarez, que apresenta o podcast Going for Broke, que eu produzi, diz que a maior parte do jornalismo é composta por pessoas ricas que reportam para a classe média sobre os pobres. Esta é a cadeia que estamos tentando romper", diz.
"Espero que o nosso trabalho esteja chegando em uma audiência diferente, não apenas a audiência classe média das áreas costeiras, mas também pessoas que pelo menos entendem de instabilidade econômica".
De acordo com o Pew Research Center, a taxa de emprego nas redações caiu 26% de 2008 a 2020, totalizando a perda de cerca de 30.000 vagas. Alguns dos jornalistas afetados se viram sofrendo para arcar com as despesas: ex-repórteres não conseguiram pagar as contas de dentistas, aluguel ou hipoteca, pegaram trabalhos temporários ou chegaram a ficar em situação de rua. Alguns desses jornalistas recorreram ao EHRP para obter apoio para suas matérias, escritas no formato de ensaio em primeira pessoa, que incorporavam não só sua queda para a pobreza como também as dificuldades do jornalismo.
Quart viveu a instabilidade de trabalhar como freelancer, o que a impactou profundamente. "Repórteres independentes, um total de 27.000 nos Estados Unidos, perderam o emprego durante a pandemia. O valor da hora ou dia de trabalho caiu bastante ao longo do tempo. Por isso, minha pergunta era: como a gente mantém 'os 99%' dos repórteres freelancers trabalhando? Parte do EHRP é sobre salvar essas espécies ameaçadas - os jornalistas", diz Quart.
Uma abordagem editorial diferente
Trabalhar com pessoas que enfrentaram dificuldades econômicas também demanda uma abordagem diferente do jornalismo. Pessoas com experiências dolorosas, como instabilidade econômica, têm a oportunidade de escrever a partir do seu ponto de vista, com suas próprias palavras. De uma perspectiva editorial, isso significa editar os textos sendo sensível às questões de classe - por exemplo, escrever "pessoas que viveram em situação de rua" no lugar de "sem teto". Também significa renunciar a uma abordagem editorial 'durona' de crítica severa e direta que não funciona com quem viveu traumas", explica Quart.
Trabalhar com repórteres com esse tipo de bagagem também envolve repensar como jornalistas são remunerados, explica Quart. "Normalmente nós pagamos 50% adiantados principalmente se eles forem de baixa renda e nos informarem a respeito. Pagar 50% ou pagar em dia faz uma grande diferença", diz. "Parte da nossa missão é manter os jornalistas no mercado. Se isso significa que uma certa matéria vai sair mais tarde ou vai cair, ainda é mais importante que a maioria ganhe esses 50% e possa continuar tentando trabalhar como repórteres."
Escrevendo em nome da mudança social
Ao longo da história, o jornalismo conseguiu mudar as narrativas prevalentes sobre a pobreza e às vezes até influenciou a criação de novos programas e leis que salvaram vidas. Os colaboradores do EHRP estão fazendo o mesmo que seus antecessores: dando voz e rosto humanos a grandes mazelas da sociedade e às políticas que as governam.
Quart sente que um passo adiante necessário hoje é tornar as matérias sobre programas sociais mais vívidas e empáticas para a audiência em geral. "O Medicaid teve o seu momento durante a pandemia, quando o acesso era mais fácil, assim como os vales-alimentação. Precisamos tornar permanentes esses programas de emergência em desastres. Com o seu trabalho, você pode tornar esse tipo de programa mais real, mais vívido e menos tedioso."
Foto por Steve Knutson via Unsplash.