A perda por trás dos números: Como o jornalismo brasileiro está registrando as mortes por COVID-19

por Alice de Souza
May 18, 2020 em Reportagem sobre COVID-19
Por do sol em cemitério

O Brasil entrou na lista dos seis países que ultrapassaram o registro de 10 mil mortes por COVID-19. Cinquenta e três dias depois de anunciar o primeiro óbito, o país chegou a 10.627 casos fatais no sábado 9 de maio e mais de 16.000 no momento de publicação (18 de maio). Os números podem ser ainda maiores, já que a estimativa é que os dados oficiais do Ministério da Saúde sejam a ponta do iceberg e que haja uma subnotificação crônica no país.

Uma análise realizada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) mostra que, no dia 4 de maio, o país poderia ter 14 vezes mais infectados do que o divulgado oficialmente. Também houve um crescimento exponencial de internações e óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), quando comparada a média dos 10 anos anteriores. Assim como aumentaram em 14,6%, em comparação com 2019, as mortes em casa registradas em cartório.

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Esse cenário impôs aos jornalistas brasileiros, assim como aconteceu em outros países, o desafio de narrar as vidas por trás dos números e também de usar o jornalismo para ajudar familiares e amigos a velarem seus mortos — principalmente diante das limitações de velórios e sepultamentos trazidas pela nova doença.

Acostumada a lidar com os números, a jornalista de dados Judite Cypreste passou duas semanas produzindo um mapa de casos, por município, de COVID-19 no Brasil. O trabalho trouxe uma inquietação. “Precisávamos fazer uma reportagem onde os números fossem o ponto de partida, mas que trouxesse as histórias, a humanização”, conta. 

O incômodo deu origem ao especial “Números Subestimados”, publicado no dia 30 de abril e produzido com o jornalista Luís Adorno. “É uma matéria para mostrar que as pessoas não são números. Dar a cara para esses dados é importante para dizer que a pandemia é verdade, que está acontecendo, que a vítima pode ser seu vizinho, um familiar. Traz a narrativa para mais próximo do leitor”, acrescenta Cypreste.

Desde o dia 4 de abril, a Folha de S. Paulo tem publicado o especial “Histórias de vítimas do novo coronavírus”, no qual reúne obituários divididos por semana. Até o dia 9 de abril, eram 82 memórias escritas na página. O portal G1 publicou a página “As vítimas da COVID-19”, uma espécie de memorial que compila matérias publicadas no site sobre a história de algumas das pessoas que morreram por complicações do novo coronavírus. Desde abril, o Estadão também publica obituários na página da cobertura online da pandemia

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Iniciativas colaborativas 

O incômodo de não deixar as memórias escondidas sob as estatísticas também foi o mote para a criação do memorial colaborativo “Inumeráveis”. Com o slogan “não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”, a iniciativa entrou no ar no dia 30 de abril a partir de uma ideia do artista Edson Pavoni e do empreendedor social Rogerio Oliveira. 

A reunião das histórias acontece por meio da união de esforços de jornalistas voluntários. “Os números não param de crescer, e a gente não pode esquecer que eles significam pessoas, que tiveram uma vida de amores, tristezas, felicidades, e que deixaram amigos e familiares. O memorial é um retrato, ainda que pequeno, desse incômodo de não conhecer essas pessoas”, explica a jornalista e uma das coordenadoras do projeto Alana Rizzo. 

Diante da velocidade da pandemia, o grupo de oito criadores colocou a ideia em funcionamento em três semanas. Desde então, jornalistas e estudantes de jornalismo podem se voluntariar para colaborar. “Sabemos que nenhuma redação tem tanto braço para contar a quantidade de caso, principalmente considerando a desigualdade do Brasil, a existência de tantos lugares sem imprensa, os desertos de notícia. Então, a ideia é mobilizar jornalistas de todos os cantos do país para localizar as histórias e homenagear as pessoas que morreram”, afirma Rizzo.

Como participar

O jornalista pode colaborar de três formas com o “Inumeráveis”. Pode apurar uma história, escrever e publicá-la no site; pode subir no site um obituário que já apurou e publicou em outro veículo de comunicação; ou pode revisar textos e transcrever áudios enviados por amigos e parentes da vítima da COVID-19 para o memorial. Na página, há um  formulário para fazer o upload das histórias, além de um e-mail para contato. Todas as publicações passam por uma checagem de fatos e seguem uma metodologia. Segundo Rizzo, a ideia é transformar o memorial em uma obra física no futuro.

Um dia depois de o Brasil passar dos 10 mil mortos por COVID-19, o jornal O Globo trouxe uma capa inteira, em parceria com o memorial “Inumeráveis”, com o nome, a idade e uma frase que definia algumas vítimas do novo coronavírus. Entre os cerca de 140 nomes, a capa trouxe a manchete: “10 mil histórias - Evento mais letal no Brasil em 102 anos, pandemia de COVID-19 chegou ontem oficialmente a 10.627 mortes. Para que a dimensão humana da tragédia não se perca na frieza das estatísticas, o Globo homenageia as vidas reunidas em um memorial virtual.”

Capa do jornal O GLobo
Reprodução da capa do Jornal O Globo do dia 10 de maio, que conta as histórias sobre as 10 mil vidas perdidas em meio à pandemia. 

 

A reportagem especial, dedicada a falar sobre o luto e a memória dos que partiram, tem mais duas páginas, que também trouxeram os nomes de mais vítimas, suas idades e frases que resumem a história delas. No texto, os jornalistas Rennan Setti e Gabriel Cariello explicam que “mesmo quando reduzido a algarismos, o coronavírus não é um número qualquer, porém. Sua letalidade é superlativa até se comparada à de tragédias que assombram o imaginário coletivo brasileiro”.

Outra iniciativa colaborativa é o Memorial Corona Brasil, criado pela “Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais de COVID-19”, um coletivo emergencial de 60 organizações solidárias às famílias de vítimas da pandemia. Os jornalistas podem se somar de diversas formas. Colaborando com a edição das histórias na página do Facebook, seguindo a metodologia de apuração desenvolvida pela rede; ajudar no amparo às famílias; ou participando de um grupo de trabalho, ao lado de historiadores e cientistas sociais, para pensar como documentar a memória da pandemia.

“Há uma experiência de redefinição da vivência do luto, e a gente está buscando tratar isso com muito rigor. A sociedade está vivendo um luto antecipado, as pessoas estão com medo. Nesse momento, muitos querem socializar nas redes sociais a homenagem à memória dos que se foram. Nosso trabalho é uma forma de ajudar no ritual de despedida à distância”, explicou o historiador Danilo César, um dos criadores da rede. A rede também compila matérias feitas por outros jornalistas na página e realiza uma investigação proativa, de conversar com as famílias, para produzir outros níveis de memória da pandemia.

Informações para se integrar à Rede podem ser obtidas por WhatsApp ou telegram (+55 11-93011-3281, +55 11-99772-0491 ou +55 21-99809-9199) ou ainda pelos e-mails memorialcoronabrasil@gmail.com ou redeapoiocovid@gmail.com.


Alice de Souza é repórter na Agência Retruco, coordenadora editoral de projeto no Sistema Jornal do Commercio de Comunicação e integrante da Red LATAM de Jóvenes Periodistas Distintas Latitudes. 

Imagem sob licença CC no Flickr por Lucas Motta