O jornalismo está em crise em várias partes do mundo. O setor enfrenta desafios em múltiplas frentes, desde um modelo financeiro incerto até a queda nos níveis de confiança e o aumento das pessoas que evitam consumir notícias. A trajetória é clara — a não ser que façamos as coisas de um jeito diferente.
Em meio a esse cenário tumultuado, o jornalismo centrado na comunidade (JCC) oferece um meio em potencial para tratar desses vários desafios existenciais. Esse modelo, que eu venho explorando ao longo do último ano em dois relatórios para o Agora Journalism Center, enfatiza a criação de notícias para e com comunidades em vez de simplesmente reportar sobre elas.
Fazer isso exige se afastar do modelo tradicional de agregar e distribuir notícias estruturado de cima para baixo. No lugar dele, os jornalistas são chamados a criar conexões profundas com comunidades, ouvi-las ativamente para entender suas necessidades informativas e envolvê-las ao longo do processo de produção de notícias. Ao fazer dessa forma, o JCC fornece o potencial para criar um jornalismo mais inclusivo, impactante e orientado ao serviço.
Confira a seguir o que você precisa saber sobre o jornalismo centrado na comunidade e como redações podem adotar essa abordagem transformadora.
O que é o jornalismo centrado na comunidade?
Em seu cerne, o jornalismo centrado na comunidade enfatiza a criação de notícias para e com comunidades em vez de notícias sobre as comunidades. Ele busca tratar de desigualdades de longa data no jornalismo ao destacar vozes sub-representadas e focar nas necessidades reais de informação de audiências diversas. Essa abordagem envolve escuta profunda, colaboração ativa e um comprometimento com a reformulação de práticas tradicionais de reportagem.
Diferentemente do jornalismo convencional, que muitas vezes assume um papel de controle de cima para baixo, o JCC muda a dinâmica de poder. Ele valoriza contribuições da comunidade em todos os estágios do processo jornalístico — desde a identificação de ideias de pauta à determinação de quais delas vão ser produzidas e distribuídas.
Essa abordagem colaborativa redefine a relação entre jornalistas e as comunidades servidas por eles. Isso ocorre por meio de escuta profunda, construção de relacionamento e envolvimento ativo da comunidade. Ao fomentar confiança e transparência, o JCC pode ajudar a reconstruir conexões com audiências que podem se sentir alienadas pela grande mídia.
Os princípios fundamentais do JCC incluem:
- Centralidade das necessidades informativas da comunidade
- Facilitação do diálogo e do entendimento
- Construção de confiança e promoção da igualdade
- Adoção de uma mentalidade de "pertencimento e serviço"
- Criação de práticas jornalísticas recíprocas no lugar de práticas extrativas
Ao focar nesses princípios, o JCC busca produzir um jornalismo mais relevante, confiável e impactante, que presta verdadeiramente um serviço às necessidades da comunidade presente no processo.
Por que o jornalismo centrado na comunidade é necessário?
O jornalismo centrado na comunidade não tem todas as soluções para os problemas que o jornalismo enfrenta atualmente, mas ele pode desempenhar um papel no enfrentamento de alguns dos grandes desafios da profissão, a saber:
(1) Restauração da confiança
A confiança no jornalismo está nos níveis mais baixos da história ou bem perto disso em vários países. De acordo com o Digital News Report 2024, só 40% dos respondentes da pesquisa mundial disseram confiar na maioria das notícias. O JCC oferece um remédio em potencial para esse problema ao priorizar transparência, representatividade e relevância, fazendo com que as comunidades se sintam vistas, ouvidas e valorizadas.
(2) Combate à tendência de evitar notícias
Muitas pessoas evitam as notícias deliberadamente, muitas vezes porque o noticiário parece ser irrelevante ou exageradamente negativo. O JCC combate isso ao focar em uma cobertura que trata de preocupações reais das comunidades bem como em necessidades informativas que são identificadas.
(3) Aprimoramento da sustentabilidade
Ao alinhar o jornalismo com as necessidades da comunidade, o JCC pode ajudar as redações a identificarem audiências e fontes de receita inexploradas. Parcerias, subsídios e programas de membros podem ser mais fáceis de se assegurar quando uma redação demonstra um impacto tangível em sua comunidade. Além disso, o JCC pode ajudar a gerar mais engajamento cívico ao fornecer às comunidades informações relevantes e práticas.
(4) Fomento à inovação
O JCC encoraja a experimentação com novos formatos, plataformas e técnicas narrativas, permitindo que as redações prestem um melhor serviço às audiências onde elas estão. Também encoraja maior diversidade e inclusão na cobertura, o que é bastante necessário.
Capa do estudo Redefinindo o Jornalismo: Um manifesto para o jornalismo centrado na comunidade
Como praticar o jornalismo centrado na comunidade
Fazer a transição para a abordagem do JCC exige uma mudança de mentalidade, práticas e prioridades para muitos jornalistas e redações. Particularmente, estes cinco passos práticos precisam ser integrados ao que você faz e à forma como você faz:
(1) Entender as necessidades da comunidade
Um ponto fundamental do JCC é saber o que realmente importa para a sua audiência. Ferramentas como pesquisas, grupos de escuta e grupos focais podem ajudar a descobrir essas necessidades. Por exemplo, antes do lançamento, o El Tímpano, com sede em Oakland, se valeu de um projeto de escuta durante nove meses para identificar questões críticas para imigrantes latinos, o que resultou em conteúdos que abordavam diretamente as preocupações dessa comunidade. Outros veículos adotaram uma abordagem semelhante enraizada na escuta profunda.
"Humildade e conscientização são muito importantes para fazer um bom trabalho no jornalismo centrado na comunidade", diz Eve Pearlman, CEO e cofundadora do Spaceship Media. "Tenha uma curiosidade genuína sobre aquilo que você não sabe, não vê, etc. Sua forma de ver as coisas, os seus valores, suas ideias não são a única forma, não são o jeito certo, etc."
(2) Mapear ecossistemas de informação
Entender como a informação flui em uma comunidade é essencial. Veículos jornalísticos não são as únicas fontes de informação às quais as comunidades recorrem. Por causa disso, redações devem identificar influenciadores, espaços físicos (como bibliotecas ou cafés) e plataformas digitais onde as pessoas compartilham e consumem notícias. O mapeamento de ativos, técnica emprestada do desenvolvimento de comunidades, pode ajudar a localizar esses pontos.
Você pode se inspirar no projeto Up the Block, do The Trace, que criou uma lista de recursos — em inglês e espanhol — para moradores da Filadélfia com base no feedback sobre suas necessidades após incidentes com armas de fogo.
(3) Ir onde as comunidades estão
O jornalismo efetivo não trata-se apenas daquilo que você cobre; trata-se também de como e onde você o distribui. Seja em grupos do WhatsApp, redações temporárias em bibliotecas ou serviços de SMS, ir até a audiência nas plataformas preferidas por ela, bem como em seus espaços físicos de preferência, aumenta o engajamento e ajuda a gerar confiança e transparência.
O Outlier Media, de Detroit, exemplifica isso ao usar mensagens de texto para distribuir informações vitais para comunidades carentes. O TXT OUTLIER é um serviço de SMS que não só fornece informações essenciais para moradores de Detroit como também permite às pessoas interagir diretamente com os repórteres.
De modo semelhante, a Greater Govanhill, revista multilíngue premiada que serve a comunidade na região de Govanhill em Glasgow, na Escócia, abriu uma redação comunitária para tornar seu jornalismo mais acessível e participativo.
Imagem via Public Interest News Foundation
(4) Comprometer-se com a diversidade na narrativa
O JCC exige que as redações envolvam as comunidades na narrativa, garantindo a diversidade de perspectivas e a amplificação de vozes no coração de suas práticas jornalísticas. Para que isso ocorra, veículos estão explorando mecanismos como a criação de conselhos consultivos comunitários ou sessões de escuta como a "ThinkIns" da Tortoise Media.
Conforme me disse Candice Fortman, diretora-executiva da Outlier Media, durante uma entrevista para este texto, o jornalismo precisa ir além da caça a cliques e prêmios para ser mais orientado ao serviço às suas comunidades. Para garantir que todas as partes do seu negócio estejam indo na mesma direção, é necessário alinhar objetivos editoriais com estratégias de negócios e necessidades da comunidade. Essa triangulação é essencial para o sucesso de longo prazo.
(5) Focar em soluções e positividade
Enquanto o jornalismo tradicional na maioria das vezes foca em problemas, o JCC pode se voltar para um estilo de reportagem mais orientado a soluções. Ao demonstrar a resiliência e criatividade de comunidades, jornalistas podem fomentar um senso de orgulho e esperança.
O projeto Stories of Atlantic City, por exemplo, usou um foco narrativo restaurador para celebrar a força de comunidades locais, desafiando estereótipos negativos e fomentando o diálogo significativo.
Imagem via the Gather platform.
Implementação de uma abordagem centrada na comunidade
O jornalismo centrado na comunidade não é apenas uma resposta aos desafios do jornalismo; é uma oportunidade para reimaginar o futuro da profissão. Ao estimular a confiança, inclusão e colaboração, o JCC tem o potencial de criar mudanças há muito tempo necessárias, mais especificamente um panorama de mídia mais equitativo e sustentável.
Adotar o JCC não é necessariamente fácil. Resistência à mudança, recursos limitados, mensuração de impacto e limitações de tempo impõem desafios significativos. Porém, se quisermos criar um jornalismo mais relevante, impactante e que atenda diretamente necessidades informativas, precisamos investir em esforços que propositadamente fomentam conexões profundas entre redações e comunidades.
Conforme me disse Madeleine Bair, fundadora do El Tímpano, "você pode fazer toda verificação de fatos que for, mas se as pessoas não confiam no seu veículo, não faz a menor diferença".
Por causa disso, ela recomenda a adoção de comportamentos inerentes aos ideias do jornalismo centrado na comunidade. "O tempo gasto no desenvolvimento de relações e na escuta é um tempo bem gasto", diz. "Quando você investe de antemão na construção de relações de confiança e na escuta da audiência que você pretende servir, você recebe um retorno desse investimento."
Para mais ideias e estudos de caso nesse artigo, confira os dois relatórios produzidos por Damian Radcliffe, Redefinindo as notícias: Um manifesto pelo jornalismo centrado na comunidade e Promoção do Jornalismo Centrado na Comunidade (ambos em inglês). Você também pode ler esses relatórios divididos em capítulos na página do autor no Medium.
Foto por Mathew Schwartz via Unsplash.