O Dart Center for Journalism and Trauma acaba de lançar um novo guia com o objetivo de ajudar jornalistas com questões relacionadas ao trauma.
O vocabulário da medicina tem uma característica infeliz: muitas de suas palavras são tão descritivas que elas também clamam para serem usadas fora do contexto médico.
Se você diz que alguém é tóxico, provavelmente não quer dizer que essa pessoa está causando danos às funções do fígado. Se o seu romance precisa de um antagonista, você não está buscando alguém para bloquear a função das proteínas receptoras do seu herói. Um estudante de ensino médio sofrendo com cálculo possivelmente está preocupado com equações diferenciais e não com pedras nos rins. E se você recebeu um insulto brutal, realmente faz diferença saber se alguém fez piada com o seu corte de cabelo ou se uma bigorna caiu na sua cabeça.
Isso também vale para a linguagem do trauma, que tem tanto um significado médico quanto um sentido cultural mais amplo. Fazer o ENEM ou vestibular foi realmente traumático? A prova de fato provocou estresse pós-traumático? Você já foi viciado de verdade em um programa de TV?
Um certo grau de imprecisão não é problema em conversas corriqueiras; se você diz "uau, os Giants estão matando a bola", ninguém vai pensar que o time de futebol americano deveria ser preso e acusado pelo homicídio da bola. Mas para jornalistas a precisão faz parte da descrição do trabalho, e a linguagem que você usa sem cuidado pode impactar a vida das pessoas.
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Entra em cena o Dart Center for Journalism and Trauma, que fez o trabalho duro para ajudar repórteres a lidarem com o trauma em suas carreiras e entenderem melhor os traumas sofridos pelas pessoas sobre quem eles escrevem. O instituto acaba de lançar um novo guia com o objetivo de ajudar jornalistas com questões relacionadas ao trauma, tanto aquelas com deadlines curtos quanto as que têm mais tempo para serem trabalhadas. O guia se chama Dart Center Style Guide for Trauma-Informed Journalism e vale a leitura.
Por exemplo, vamos considerar o transtorno de estresse pós-traumático. Não é apenas um termo abrangente para o impacto duradouro que um evento traumático causa em uma pessoa:
Inicialmente definido pela Sociedade Americana de Psiquiatria em 1980, o Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT) é um dano psicológico resultante da exposição a um fator de estresse extremo em que a pessoa experimentou ou testemunhou um evento ou múltiplos eventos que envolveram dano real ou ameaça à sua integridade física ou à de outros.
Para o diagnóstico, um certo número de sintomas em quatro áreas precisam durar por mais de um mês e interferir no dia a dia. Eles incluem lembranças involuntárias do trauma, evitar elementos que remetem ao trauma, alterações negativas no humor e na cognição, excitação exagerada ou reatividade. Algumas dessas reações de estresse traumático podem ser observadas sem que atendam aos critérios para um diagnóstico de TEPT.
O TEPT não pode ser confundido com descrições mais gerais de reações relacionadas a traumas. Tenha em mente que a maioria das pessoas que vivem um trauma recuperam-se naturalmente e não desenvolvem TEPT. Apenas se refira ao TEPT se for relevante e se tiver sido formalmente diagnosticado.
Se uma pessoa anteriormente traumatizada se sente "engatilhada", isso significa que ela foi "retraumatizada"? Não.
Retraumatização não é o mesmo que gatilho. Gatilhos trazem à tona memórias dolorosas e às vezes flashbacks. A retraumatização é mais forte e desgastante: ela acontece quando um lembrete consciente ou inconsciente faz com que a pessoa reviva com intensidade e de forma ampla os sentimentos, pensamentos e ocasionalmente memórias pós-traumáticas como se elas estivessem ocorrendo no presente.
Por exemplo, se um jornalista entrevista uma pessoa sobrevivente de um trauma, e a barba ou cheiro do jornalista lembram a vítima do agressor responsável pelo evento traumático, e a pessoa sente pavor, isso é um gatilho. Mas se um jornalista pressiona um sobrevivente a dar uma entrevista e insiste depois de o sobrevivente pedir para parar, essa violação pode levar a pessoa a ter os mesmos sentimentos e reações de impotência e abuso do momento do evento traumático — isso é uma retraumatização.
(A propósito: não faça isso.)
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E sobre o "trauma" propriamente dito? Está bem no nome do Dart Center, afinal de contas.
Trauma é um substantivo complexo e ambíguo, tanto no uso casual quanto clínico. Trauma pode se referir a uma ferida física; o evento violento e danoso em si; as consequências psicológicas contínuas desses eventos ou um sentimento comum de perda ou vitimização. Ele pode se referir a uma experiência única ou os efeitos de um medo devastador, ou o impacto cumulativo e complexo de ameaça e abuso contínuos, ou ambos.
Para aumentar a confusão, a ciência nos diz que um mesmo evento vai ter impactos biopsicossociais amplamente variados em diferentes indivíduos. O mesmo acidente de carro pode ser um evento passageiro para uma pessoa, mas em outra pode evocar TEPT contínuo ou outro dano psicológico.
Por essa razão, use trauma como um substantivo (e sua forma em verbo e adjetivo: traumatizar e traumático) com cuidado, sempre deixando claro o significado e o contexto. Evite o uso generalizado de "trauma" como um recurso fácil que pode patologizar luto ou sofrimento comum, ou que não consiga explicar resiliência e desafios emocionais.
Sempre que possível, use linguagem mais específica que expresse o sentido particular de um evento, reação ou condição (por exemplo, prefira "ela tinha dificuldade de dormir ou de se concentrar" no lugar de "ela estava traumatizada”). Evite o uso exagerado de "trauma" ou "traumatizado" em formas que sugiram uma resposta uniforme a eventos angustiantes, e tenha cuidado para distinguir sofrimentos de curto prazo de reações de estresse traumático de longo prazo.
O guia inclui muitas outras informações junto com questões especificamente relacionadas ao trauma, mas também aborda questões que podem surgir em coberturas relacionadas —desde questões relativas a pessoas transgênero e refugiadas, tiroteios em massa, doenças mentais, suicídio e genocídio. O conselho não é necessariamente didático ("Você tem que escrever exatamente desse jeito!"); é mais sobre tratar de alguns assuntos e preocupações que podem surgir quando você está diante de vidas que podem não ser como a sua. Tire um tempo para ler o manual e você provavelmente vai ficar ligeiramente melhor no seu trabalho do que antes de ter lido. Isso deve garantir a superação que você precisa.
(Oops: a não ser que uma fonte use o termo, evite usar a palavra "superação" nas suas reportagens ou quando for entrevistar alguém. Desculpe.)
Este artigo foi originalmente publicado pelo Nieman Lab e republicado na IJNet com permissão.
Joshua Benton é o fundador e redator sênior do Nieman Lab.
Imagem por Engin Akyurt no Pixabay.