Mídia comandada por mulheres desafia estereótipos e tabus na Somália

Sep 4, 2024 em Temas especializados
صورة شكري عبدي محمود خلال اعداد احد التقارير

A Somália é um dos países mais perigosos no mundo para jornalistas. Numa sociedade altamente conservadora, espera-se amplamente que as mulheres fiquem em casa e evitem a vida pública. 

O primeiro veículo de mídia do país totalmente composto por mulheres, Bilan Media, está se opondo a essa norma, oferecendo um espaço de trabalho seguro para as jornalistas ao mesmo tempo em que dá a elas o poder de escolher o que vão cobrir.

Para saber mais sobre esse projeto de mídia singular, eu conversei com a cofundadora Mary Harper, a editora-chefe Hinda Abdi Mahmoud e Shukri Abdi Mahmoud, a jornalista mais jovem da equipe de seis mulheres. Elas falaram sobre as inspirações por trás da Bilan Media, os desafios enfrentados pelo veículo, as ambições da equipe, dentre outros assuntos.


A história original

Quando a jornalista britânica Mary Harper viajou para a Somália quando era uma jovem profissional de 20 e poucos anos, ela se apaixonou pelo país imediatamente. Ao longo de 30 anos trabalhando na BBC fazendo a cobertura da África, ela publicou dois livros sobre a Somália.

 

صورة ماري

 

Ela criou a Bilan Media em 2022 em parceria com Robert Few, responsável pelo setor de comunicação do veículo e o único homem da equipe.

Com o apoio do Programa de Desenvolvimento da ONU, a principal inspiração da Bilan Media é intermediar o jornalismo de qualidade produzido por jornalistas somali talentosas, explica Harper. Ao publicar matérias feitas por mulheres, o veículo atua como um lampejo de esperança para outras mulheres na Somália que desejam se tornar jornalistas.

Empoderamento de mulheres

Mulheres na Somália são frequentemente tratadas como cidadãs de segunda classe. "Normalmente, mulheres não têm um papel significativo na vida pública e são na maioria das vezes ignoradas", diz Harper.

A Bilan Media é frequentemente atacada e criticada, pois dá espaço para que mulheres jornalistas compartilhem suas ideias e as transformem em realidade. "É bastante difícil para elas, mas elas são corajosas e estão determinadas a não parar", diz Harper. Frequentemente as jornalistas ouvem que o lugar delas é em casa, cozinhando, limpando e cuidando de crianças. 

"A motivação por trás da escolha de uma carreira no jornalismo vem do fato de elas crescerem em um ambiente onde é negada às mulheres a autonomia para tomar suas próprias decisões", diz Shukri Abdi Mahmoud, de 24 anos.

 

صورة لشكري

 

Shukri, que cresceu em uma família somali conservadora, está tendo que lidar com percepções negativas sobre a presença de mulheres no jornalismo. "Minha entrada nessa área surpreendeu todo mundo, já que sou a primeira mulher da família a trabalhar com jornalismo."

Em 2018, ela enfrentou ameaças de um grupo terrorista devido ao seu trabalho jornalístico. Mas Shukri continuou trabalhando, acreditando na importância de empoderar mulheres para que elas assumam papéis na política e em suas comunidades. "Essa é a mensagem que quero passar para a sociedade."


Independência editorial

As seis mulheres que trabalham na Bilan vêm de todas as partes da Somalia. Elas trazem consigo uma rica experiência na mídia e um comprometimento com os direitos das mulheres e a integridade jornalística. Elas trabalham em um ambiente seguro, exclusivo para a equipe e com acesso restrito de homens.

A equipe administra todos os aspectos da produção de matérias, desde a escolha de assuntos e como será feita a cobertura, até a produção de imagens, entrevistas, redação de roteiros, tudo isso na maioria das vezes usando apenas um telefone celular. "Elas tomam conta de todas as etapas das matérias, do início ao fim", diz Harper.

Priorizar a segurança deu à equipe possibilidade de produzir matérias de impacto que outros jornalistas podem não conseguir fazer. "Nossa posição singular como um veículo totalmente de mulheres nos dá acesso a lugares e pautas que homens podem ter dificuldade de acessar", diz a editora-chefe Hinda Abdi Mahmoud.

A equipe totalmente feminina fomenta um "senso de empoderamento e solidariedade", segundo Mahmoud. "Nós criamos um ambiente de apoio e colaborativo, que permite sermos criativas no nosso trabalho."

De maneira notável, a equipe deu destaque a problemas do país, por exemplo, mulheres que lidam com o vício em drogas e como pessoas albinas são tratadas. A equipe da Bilan "é comprometida com a quebra de tabus e com o foco em problemas que não foram suficientemente abordados", diz a editora.

 

صورة هندا

Produção de matérias

A Bilan Media faz reuniões de pauta semanais com Harper para discutir novas ideias de matérias e sua produção. As jornalistas também enviam seus trabalhos em vídeo para Harper analisar.

Como a equipe foi se tornando mais habilidosa com o tempo, Harper foi se envolvendo menos. "Meu objetivo é que todas essas tarefas sejam conduzidas inteiramente pela equipe", diz.

Além das matérias próprias, a Bilan Media também sugere pautas para veículos estrangeiros como The Guardian, BBC, e El País.

A equipe está comprometida com a apresentação de uma visão equilibrada da Somália, evitando produzir somente pautas negativas. "É crucial que a Somália seja representada com precisão e de forma justa no cenário internacional, já que é um daqueles países que sofrem com inúmeros estereótipos", diz Harper.

O valor de ter jornalistas locais produzindo matérias para a mídia internacional reside em seu profundo entendimento da cultura e do lugar. "Tenho sorte de ter começado a trabalhar na BBC, onde os programas eram produzidos primordialmente por pessoas da África ou por quem tem fortes conexões com o continente, como foi meu caso, com foco em uma audiência africana que quer matérias sob uma perspectiva africana", diz Harper. "Não era o caso de enviar um jornalista do Reino Unido ou dos EUA para fazer uma única pauta." 

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Programas de estágio

Há duas universidades na capital Mogadishu especializadas em jornalismo: a Universidade Nacional da Somália e a Universidade Mogadishu. Jornalistas que se formam em ambas as instituições enfrentam desafios significativos para assegurar oportunidades de emprego.

A Bilan Media criou um programa de estágio para lidar com essa realidade, voltado para as melhores estudantes de jornalismo e recém-formadas. As estagiários têm a chance de trabalhar na Bilan em meio período por seis meses, colaborando com a equipe na produção de matérias.

A própria Hinda Abdi Mahmoud começou como estagiária. Trabalhar no veículo a ajudou a aprimorar habilidades em fotografia, edição e técnicas de narrativa.

"A Bilan é um solo fértil para o desenvolvimento das minhas habilidades de liderança", diz. "Os contínuos programas de treinamento na Bilan foram cruciais para manter minhas habilidades e ficar atualizada com os padrões atuais da profissão."

Este artigo foi publicado originalmente na IJNet em árabe.

Imagens cedidas pela equipe Bilan Media.