Mídia abre espaço para mulheres do Oriente Médio contarem suas histórias

May 15, 2024 em Temas especializados
Women Who Won the War Banner

A Guerra Civil na Síria já tirou a vida de mais de 500.000 pessoas desde que protestos contra o governo durante a Primavera Árabe se converteram em conflito, em 2011. Quase 7 milhões de Sírios fugiram para o exterior em um êxodo em massa, e uma quantidade equivalente se deslocou dentro do país – no total, mais da metade da população da Síria pré-guerra.

Desde então, a guerra perdeu a atenção global, mas os jornalistas sírios continuam informando sobre o conflito atualmente, ao mesmo tempo em que testemunham os crimes cometidos naquele que tem sido um dos conflitos mais fatais do século XXI.

Mais Katt, repórter investigativa freelance síria que hoje vive na Holanda, cobre a guerra há mais de dez anos. Como a primeira bolsista do Programa de Reportagem Jim Hoge do ICFJ, ela escreveu sobre a vida de três jornalistas sírias que cobrem a guerra civil.

matéria publicada foi inspiração para que ela lançasse um novo veículo, Women Who Won the War, dedicado a criar um espaço para que mulheres contem suas histórias fora do olhar tradicional de esposas, mães e vítimas. A plataforma também oferece apoio, capacitação e orientação para jornalistas mulheres em zonas de conflito, com foco particular no Oriente Médio e Norte da África.

Eu conversei com Katt sobre o Women Who Won the War, o futuro que ela enxerga para o jornalismo no Oriente Médio e outros assuntos:

Fale sobre o Women Who Won the War. Como surgiu a ideia desse projeto? 

Katt: A ideia surgiu nesse programa do ICFJ. É um programa concedido por Jim Hoje, um jornalista dos Estados Unidos que sempre tentou abrir as portas para os colegas mais jovens. Eu me inscrevi para produzir a matéria Três mulheres que ganharam a guerra. O foco era em três mulheres sírias que tiveram vidas diferentes durante a guerra no país. Elas participaram da revolução de formas diferentes.

Eu queria contar a história pessoal delas para contar a narrativa da Revolução Síria e da Guerra na Síria a partir da perspectiva de mulheres inspiradoras, que são agentes de transformação, que podem tornar o mundo um lugar melhor, em vez da forma como ouvimos no Oriente Médio e Norte da África, com as mulheres como vítimas ou sobreviventes, ou como as esposas ou viúvas dos heróis.

Quem são as mulheres retratadas na matéria?

A primeira mulher é Lubna Kanawati. Ela é uma feminista síria e sobrevivente de um ataque químico. Ela saiu de Damasco e foi para a área controlada pela oposição, depois fugiu para o norte da Síria e então para Turquia, e de lá para a França.

Na França, ela foi uma das fundadoras de uma organização chamada Women Now for Development, organização da sociedade civil focada em mulheres. Ela representa uma combinação muito bonita entre leveza, sendo muito feminina, e ao mesmo tempo é muito forte, o que é realmente bonito porque na maior parte do tempo nós, mulheres jornalistas, adotamos o comportamento dos homens.  

A segunda é Haneen al-Sayyed. Ela é uma jovem jornalista que vive no norte da Síria, uma área controlada por extremistas. Ela foi desalojada várias vezes e acabou em Afrin, uma área de onde todos os curdos tiveram de fugir. É freelancer e teve que interromper os estudos na universidade por causa da guerra, mas continuou trabalhando como jornalista.

A terceira é Razan Zaitouneh. Ela é advogada e também cresceu em Damasco. Inclusive, nós estudamos juntas na universidade. Em 2013, ela foi sequestrada junto com mais três amigos pelo Exército do Islã, grupo rebelde sírio-islâmico também conhecido como Jaysh al-Islam, e nunca voltou. Não sabemos se ela está viva ou não. Mas ela venceu a sua própria guerra. Ela também testemunhou ataques químicos e os documentou para a ONU quando ocorreram.

 

Mais Katt
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Quando você diz que Zaitouneh "venceu a sua própria guerra", a guerra física no campo de batalha não foi vencida na Síria. Você pode explicar melhor o que quer dizer com isso?

Se você é quem começa a guerra, você enxerga como vitória o fato de vencer a guerra fisicamente, no sentido de tomar um território ou uma posição política.

Mas se você não escolheu a guerra, você também pode vencer sua guerra do seu jeito – tornando o período de guerra um momento melhor para as pessoas, ajudando, apoiando, inspirando e também mudando os caminhos de outras pessoas. É por essa razão que chamo isso de "vencer a guerra".

Como o Women Who Won the War se originou a partir dessa matéria?

Durante o período em que eu estava escrevendo a matéria, Jim Hoge morreu. Isso me fez pensar em fazer da matéria um projeto permanente. Eu sentia que tinha tanto a dizer, e eu também descobri tantas outras histórias maravilhosas para contar quando estava buscando por essas três mulheres.

Eu sentia que era muito importante transformar isso em um projeto permanente, o que também correspondia à visão do próprio Jim Hoge. Eu encontrei essa conexão entre a ideia, o que eu realmente queria fazer e o propósito do programa. Eu vejo o projeto como uma plataforma para contar histórias mais profundas e longas e para focar em mulheres em áreas de conflito, falando não só da guerra no sentido literal da palavra, mas também a guerra social, os desafios que qualquer mulher pode enfrentar na sociedade.

Por outro lado, eu percebi que temos uma grande lacuna entre as jornalistas mulheres que fazem jornalismo investigativo ou jornalismo aprofundado. Na minha região, as mulheres fazem matérias mais curtas, focam mais em questões sociais, mas não necessariamente no jornalismo aprofundado. Essa é a outra missão dessa plataforma, oferecer capacitação e oportunidades para jovens mulheres jornalistas produzirem reportagens com um impacto profundo.

Pessoalmente, significa muito fazer parte da mudança de perspectivas e mudança de narrativas sobre mulheres no Oriente Médio. Contar histórias reais que estão acontecendo na rua, porque são sempre os vencedores físicos da guerra que contam as histórias e narrativas da guerra, da revolução e dos conflitos. Pode ser muito, muito pessoal simplesmente contar nossa própria narrativa como mulheres e falar sobre a guerra a partir da nossa perspectiva. 

Como você vê o futuro do jornalismo no Oriente Médio?

Quando olho para o jornalismo no Oriente Médio, é muito difícil ser otimista. O jornalismo é parte da democracia, então não é apenas sobre os conflitos, mas também as ditaduras. Trata-se também da masculinidade nessa sociedade. Não é fácil de jeito nenhum. O caminho é cheio de grandes pedras e rochas.

É muito difícil ser otimista, mas também queria dizer para as pessoas: não desistam. E é por isso que é muito importante o ICFJ continuar fazendo esse trabalho, fornecendo um modelo de jornalismo, capacitação e apoio a pessoas e pequenas organizações independentes para que elas construam seus próprios caminhos com base nos princípios em que elas acreditam. Isso é o que me deixa mais otimista.

Recentemente você foi indicada para o Prêmio de Imprensa Europeu 2024. O que isso significa para você?

Sendo uma jornalista imigrante morando na Europa, essa indicação significa muito para mim. Eu vejo essa indicação por uma reportagem sobre lacunas na discriminação de gênero dentro do sistema de migração europeu como um grande impulso para o meu trabalho voltado para as mulheres, questões de imigração e zonas de conflito, o que me deixa mais comprometida com o projeto Women Who Won the War e mais determinada a seguir adiante com ele.


Foto cedida por Mais Katt. 

A entrevista foi editada por questões de tamanho e clareza.


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Jornalista freelancer

Devin Windelspecht

Devin Windelspecht é editor da Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet). Antes de trabalhar na IJNet, ele era jornalista freelancer e cobria preservação e direitos humanos.