Jornalistas sul-africanas sofrem perseguição online constante e impune

May 28, 2024 em Segurança Digital e Física
Johannesburg, South Africa

Alerta: este artigo inclui conteúdo que ilustra a severidade da violência online contra mulheres, incluindo referências a violência sexual e obscenidades baseadas em gênero. O conteúdo em questão não foi incluído no texto desnecessariamente. É essencial permitir a análise dos tipos, métodos e padrões dos ataques contra as jornalistas sul-africanas do Daily Maverick.


Às vésperas da eleição presidencial na África do Sul, uma nova pesquisa do ICFJ em parceria com a Universidade de Sheffield detalha como ataques online contra as jornalistas do país são praticados de forma rotineira e impunemente. 

Os ataques, impregnados de misoginia, racismo ou homofobia, entre outras formas de discriminação, tentam marginalizar as jornalistas e silenciar seu trabalho crítico. Enquanto isso, autoridades legais e as grandes plataformas de tecnologia onde essa violência ocorre fornecem pouco ou nenhum recurso, e poucas redações oferecem apoio à saúde mental das mulheres afetadas. 

Provocados por políticos populistas e seus seguidores, pela mídia cooptada, grupos antivacina, dentre outros, os ataques tendem a aumentar vertiginosamente logo após alguma reportagem de tom crítico e crescem com a proximidade de eleições.

"Qualquer mulher jornalista na África do Sul que publica trabalho investigativo, por exemplo sobre a corrupção do Estado ou as ações do partido populista Combatentes da Liberdade Econômica (EFF na sigla em inglês) e seus líderes, se torna um alvo em potencial da violência online", escrevem as autoras do estudo, Drª. Julie Posetti, vice-presidente e diretora global de pesquisa do ICFJ, Julie Reid, professora da Universidade da África do Sul, Nabeelah Shabbir, diretora-adjunta de pesquisa do ICFJ, e Drª Diana Maynard, pesquisadora sênior da Universidade de Sheffield.

Em meio aos altos níveis de violência de gênero na África do Sul, e ao aumento de assassinatos de informantes e investigadores nos últimos anos, "o potencial para a violência online se transformar em violência física é alto", alertam as pesquisadoras.

Em conjunto com parceiros do laboratório de perícia digital The Nerve, as pesquisadoras analisaram mais de 180.000 tuítes relacionados à jornalista envolvida no principal caso estudado pela pesquisa, Ferial Haffajee, ex-editora-chefe do Mail & Guardian e City Press na África do Sul, e atualmente repórter e editora-adjunta do veículo investigativo independente Daily Maverick. A experiência de Haffajee como alvo de violência online é considerada pelo estudo "nacionalmente emblemática". 

As pesquisadoras também analisaram mais de 90.000 tuítes relacionados a Pauli van Wyk e fizeram uma avaliação qualitativa de ataques contra Rebecca Davis, ambas jornalistas do Daily Maverick.

O estudo é o mais recente em uma série de estudos de caso baseados em big data que demonstram os padrões alarmantes da violência online com consequências offline para mulheres jornalistas no mundo todo.

Escopo da violência

O X (antigo Twitter) é a principal plataforma onde ocorrem os ataques online na África do Sul, explicam as pesquisadoras. A violência também acontece no WhatsApp, Facebook e Telegram.

Dos tuítes analisados pelas pesquisadoras, mais da metade dos que foram direcionados a Haffajee (60%) e van Wyk (54%) tinham natureza pessoal; quase metade tinha o objetivo de descredibiliza-las profissionalmente (40% e 46%, respectivamente). 

Cerca de um a cada cinco tuítes direcionados às jornalistas eram "sexistas, misóginos ou sexualizados". Em geral, os ataques tendem a ser "altamente sexualizados", por vezes fazendo referência a atos de violência sexual extrema: "tomar um tiro na vagina", por exemplo.

As jornalistas que foram incluídas na pesquisa sofreram ataques principalmente quando fizeram reportagens sobre corrupção envolvendo políticos e partidos importantes.

As pesquisadoras descobriram que a campanha coordenada de desinformação realizada pela hoje extinta empresa britânica de relações públicas Bell Pottinger para descredibilizar o trabalho das jornalistas nas investigações do caso #Guptaleaks de 2013-2016 sobre corrupção política serviu como um manual sobre como assediar jornalistas no Twitter.

Durante a campanha online de violência política, a empresa criou contas falsas nas redes sociais para atacar críticos e propagar informações falsas e repletas de ódio por meio de várias estratégias, dentre elas o astroturfing (prática de usar o financiamento de grandes corporações para fabricar debates públicos e dar a impressão de que eles são espontâneos). Os envolvidos focaram em Haffajee, tornando-a o alvo principal de abuso "altamente sexualizado e misógino" naquela que foi a primeira campanha coordenada em larga escala no Twitter contra uma jornalista no país.

Os autores dos ataques

Políticos, jornalistas cooptados, pessoas antivacina e teóricos da conspiração estão entre os principais autores da violência online. Eles usam contas legítimas, exércitos de robôs falsos e contas automatizadas para cometer os ataques.

O atual partido no poder, Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês) e o populista EFF, terceiro maior partido político da África do Sul, já atacaram mulheres jornalistas em retaliação por elas terem denunciado corrupção e fraude entre seus membros.

O EFF, em especial, já vazou online dados pessoais de algumas jornalistas e também as ameaçou fisicamente. O partido "se tornou o principal exército de violência cibernética do país ao executar uma guerra de informação", disse Haffajee em 2019. "Por anos, o EFF vem usando as redes sociais e seus eventos para realizar uma campanha de violência e discurso de ódio contra as jornalistas cujas reportagens eles não aprovam."

Por causa de uma reportagem de 2018 crítica ao líder do EFF, Julius Malema, van Wyk se tornou o alvo de "uma enxurrada de violência online". Malema chamou van Wyk de "satã" e apoiadores do EFF pediram que ela fosse estuprada e morta. O EFF é "provavelmente a central mais cruel" de ataques online contra as jornalistas, disse às pesquisadoras Branko Brkic, editor chefe do Daily Maverick, acrescentando que o partido "se comporta literalmente como o Talibã em relação às mulheres".

Os veículos alinhados com o governo ou com empresários poderosos, e que funcionam com um verniz de legitimidade de sites jornalísticos, contribuem igualmente com a violência online. A empresa Independent Media, que é proprietária de alguns dos jornais mais antigos da África do Sul, "é provavelmente o principal local de onde partem os ataques", diz Davis. Ela ainda alerta: "a facilidade com que esse tipo de ataque transcendeu as fronteiras das redes sociais para a suposta grande mídia é uma preocupação real". 

Durante a pandemia de COVID-19, as mulheres jornalistas também experimentaram altos níveis de violência online nas mãos do movimento antivacina e de teóricos da conspiração. "As jornalistas de saúde e ciência eram as que passavam pelo pior sempre que divulgavam uma informação que desagradava um certo grupo de epidemiologistas ou grupos antivacina", diz Haffajee.

O Pandemics Data and Analytics (PANDA), grupo de pesquisa do setor privado que flerta com teorias da conspiração anti-vacina, era o principal autor dos ataques. "O grupo PANDA me classificou como uma espécie de persona non grata", diz Davis, lembrando "uma enxurrada de tuítes virulentos" que ela recebeu depois de fazer uma reportagem crítica ao grupo. "A reação deles foi diferente de tudo que eu já recebi em minha carreira jornalística."

Contexto e consequências

Os ataques online contra as jornalistas sul-africanas ocorrem em um cenário de "níveis assustadores de violência sexual".

Mais da metade das mulheres no país dizem ter sofrido violência de gênero, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, e mais de três em cada quatro homens dizem já terem cometido tais ataques pelo menos uma vez. A cada três meses, cerca de 900 mulheres são assassinadas, outras 1.400 são vítimas de tentativa de feminicídio e mais de 10.000 mulheres e crianças são estupradas.

Desde 2020, houve também um "crescimento agudo" do assassinato de informantes e investigadores na África do Sul. 

Este contexto inflama o perfil de ameaça da violência online, explicam as pesquisadoras. "Quando as jornalistas recebem ameaças de estupro e de morte nas redes sociais, tais ameaças não são percebidas como 'somente online' ou ameaças remotas; elas são um perigo muito legítimo às jornalistas e são percebidas como tal", diz o estudo.

Como resultado dos ataques, as jornalistas podem se autocensurar ou adotar uma atuação discreta online – consequências que as pesquisadoras chamam de "efeito inibidor".

Haffajee reconhece que ela mudou o tipo de pauta que cobre, e Davis parou de tuitar. O Daily Maverick realocou van Wyk para um lugar remoto da África do Sul depois que ela fez uma matéria sobre lavagem de dinheiro praticada por Malema, do EFF, e o papel dele no roubo do VBS Mutual Bank. Outras ainda podem vir a abandonar completamente o jornalismo.

Impunidade

Quando jornalistas são atacadas online, elas têm pouco ou nenhum recurso à disposição. As instituições legais na África do Sul não estão familiarizadas o bastante com a questão ou não têm a capacidade para tratá-la com eficácia. E as redes sociais onde os abusos ocorrem não tratam o problema com urgência, dizem as pesquisadoras no estudo. 

As chamadas Big Tech, em particular, precisam fazer mais, reforçam as jornalistas. "Eu acho que a maior responsabilidade recai sobre as plataformas porque elas são transnacionais, são globais e enormemente poderosas [...] Este é um problema global que precisa ser discutido com as empresas", diz Haffajee.

Lidar adequadamente com o problema traria danos aos resultados financeiros das empresas, argumentou Brkic em uma entrevista de 2020: "o modelo de negócios dessas empresas precisaria mudar totalmente, o que obviamente é algo que elas não vão fazer. Elas vão destruir a humanidade."

Além disso, as jornalistas raramente têm à disposição nas redações o apoio psicológico para enfrentar os ataques violentos. "O tipo de apoio à saúde mental para jornalistas é horrível", diz Davis. "É simplesmente inexistente considerando o tipo de trauma ao qual as jornalistas estão rotineiramente expostas."

É uma história conhecida, como já mostrado anteriormente em países da Ásia, Oriente Médio, Europa e América Latina: as jornalistas enfrentam níveis altos de ataques carregados de ódio e desinformação devido ao seu trabalho e não têm praticamente lugar nenhum para buscar apoio. 

O estudo completo está disponível aqui.


Foto por Clodagh Da Paixao via Unsplash.