Jornalistas de Myanmar ameaçados pela ditadura militar

Sep 16, 2022 em Liberdade de imprensa
Protesters in Myanmar

As forças armadas de Myanmar, também conhecidas como Tatmadaw, destituíram do poder, em fevereiro de 2021, Aung San Suu Kyi, líder do país eleita democraticamente, sob acusações sem provas de fraude na eleição anterior. Logo depois de assumirem o poder, os militares começaram invasões em redações de veículos independentes e prenderam jornalistas. Até hoje, os jornalistas no país enfrentam riscos graves para continuar informando. 

Muitos fugiram e aqueles que ficaram enfrentam ameaças à sua segurança. A Repórteres Sem Fronteiras estima que, hoje, 70 jornalistas estejam presos no país. Alguns dos que foram soltos relataram tortura severa. Pelo menos quatro jornalistas morreram nas mãos da junta militar, incluindo dois que ainda estavam sob custódia.

Dentre os que enfrentaram ameaças está a jornalista freelancer Nyein Nyein Aye, condenada a três anos de prisão com trabalhos forçados. Os repórteres Maung Maung Myo e Aung San Lin foram condenados a seis anos de prisão cada um, e o fotojornalista Aye Kyaw morreu sob custódia cerca de 10 horas após a sua prisão no fim de julho.

Apesar desses riscos assustadores, muitos jornalistas enxergam na cobertura da violência militar uma forma de resistência contra o regime. Um deles é Thang Deih Tuang, que escreveu sob o pseudônimo Vahpual até deixar o Myanmar em junho. "Eu queria usar [minhas habilidades] para lutar contra a junta", disse.

Desafios logísticos

Um dos desafios mais difíceis para os jornalistas no Myanmar é o simples fato de obter informação fora do país. Eletricidade e internet instáveis complicam tarefas que já são arriscadas, como entrar em contato com fontes, muitas das quais têm medo de falar com a imprensa.

"[Os militares] cortam a energia por oito horas no dia, por exemplo. Às vezes nós não sabemos quando eles vão fazer esse corte. Não temos conexão Wi-Fi e [durante os cortes de energia] temos que confiar em dados móveis", diz Tuang.

Mesmo assim, a oferta de dados móveis é baixa. Em dezembro de 2021, o Tatmadaw ordenou as empresas de telecomunicação a dobrar o preço da internet móvel. No mês seguinte, o regime aumentou os impostos sobre as compras de chips de celular e serviços de Wi-Fi, em uma tentativa constante de restringir o fluxo da dissidência online. Uma recessão econômica severa causada pelo golpe tornou a escalada de preços ainda mais inacessível.   

Sem eletricidade ou Wi-Fi, o último recurso para contatar fontes é por meio de telefone fixo, que traz o risco de linhas grampeadas.

"Isso é muito limitante... quando você está ligando para pessoas que vivem em áreas de conflito. Basicamente, qualquer coisa pode ser sensível, até questões humanitárias no momento, porque elas envolvem um conflito [do qual] os militares são os principais criminosos", diz Emily Fishbein, jornalista freelancer dos Estados Unidos que cobre o Myanmar do exterior. "Os militares estão deliberadamente tentando encobrir informação por meio de cortes na internet."  

Buscas e apreensões

Outra barreira é o transporte, que está restringido por barreiras militares onde os soldados fazem buscas por telefones e computadores em busca de evidências de sentimento antiregime. Miliares prenderam Myo depois de fazerem buscas em seus aparelhos em uma barreira e encontrarem artigos que ele escreveu em sua conta no Facebook. 

Em setembro de 2021, Tuang trabalhava em pautas de importantes veículos internacionais, mas devido a cortes de energia ele precisou se deslocar para uma região diferente para acessar a internet. Antes de fazer isso, ele deletou todos os seus contatos e material de trabalho de seu telefone e computador. "Não tinha escolha, porque se eu não deletasse, [teria sido pego] em uma barreira", diz.

Tuang conta que ele precisou passar por pelo menos 23 barreiras militares em uma distância de 1.028 km para conseguir chegar até uma área com internet mais estável.

Os militares também invadem apartamentos e casas em Yangon, a maior cidade de Myanmar, para verificar se todos os moradores e hóspedes estão cadastrados na lista de registro de domicílio do governo. Exigir que moradores informem quem estão hospedando torna mais difícil para manifestantes escaparem dos militares. Prisões podem ocorrer se os militares se depararem com evidências de resistência durante essas inspeções. 

Para fugir disso, Nandar, jornalista que ainda está no Myanmar e escreve sob um pseudônimo, usa dois telefones diferentes. Ela carrega um que está registrado em seu nome quando está fora de casa; o outro, seu telefone de trabalho, não está registrado em seu nome e sempre é deixado na casa dela.

Quando sua casa foi invadida no ano passado, ela conseguiu esconder o telefone de trabalho e por sorte todos que estavam em sua casa naquele dia tinham registro no governo. Mesmo assim, ela mantém todo o seu trabalho no Google Drive e com frequência deleta emails e mensagens do seu telefone. 

"Todos os dias, todos os segundos, eles estão destruindo todos os nossos direitos humanos", diz. Os militares também anunciaram que iriam multar qualquer pessoa que usasse uma VPN. Nem Tuang nem Nandar ficaram sabendo de nenhum caso de aplicação da multa, mas Nandar esconde sua VPN no seu telefone quando sai. "É o único jeito que eu consigo entrar no Facebook", diz.

“Um inferno na Terra”

Nandar não quer ficar em Myanmar.

"Morar aqui é como um inferno na Terra, sufocante... É como se afogar em uma piscina pequena. Todo dia tem alguém vigiando", diz. "Não tenho nenhuma esperança." 

Porém, desde o golpe, nenhum de seus familiares conseguiu encontrar um emprego. Ela precisa ajudá-los. Apesar de ser muito perigoso trabalhar como jornalista, encontrar outro trabalho é difícil, então ela segue em frente.

Nandar ainda não conhece pessoalmente nenhum jornalista que tenha sido preso, mas conhece vários que deixaram o país. Alguns conseguiram encontrar empregos fora do jornalismo. "Eles eram repórteres muito, muito bons, Mas agora está vendendo roupa, vendendo comida", diz.

Uma amiga de Tuang foi presa no ano passado. Depois de ser libertada, ela relatou as condições na infame prisão de Insein. Ela foi colocada em uma solitária por várias semanas depois de rejeitar comida que não podia comer por questões de saúde. Outros jornalistas que sobreviveram à prisão também contaram histórias de tortura em Insein.

As condições para os jornalistas hoje estão ainda piores do que na ditadura militar anterior. Em 2011, antes do breve período democrático, o Índice de Liberdade de Imprensa colocava o Myanmar na posição 140 de 180 países. Agora o país ocupa a posição 176. Mas desta vez a geração jovem de Myanmar está reagindo com protestos e integrando movimentos armados de resistência.

"Eu acredito nas pessoas, nos jovens. Eles são muito apaixonados pela campanha pela democracia no nosso país", diz Tuang, que no momento está na Austrália cursando um mestrado. Ele continua compartilhando sua história como uma forma de resistência. "Eu também [vou] fazer o meu melhor para ajudá-los, de onde estou e com o que eu puder", diz.


Foto por Saw Wunna via Unsplash.