A descoberta das redes criminosas de contrabando de ouro na Venezuela

por María de los Ángeles Ramírez and Joseph Poliszuk
Mar 6, 2024 em Jornalismo investigativo
Mine

Em 2022, María de los Ángeles Ramírez e Joseph Poliszuk foram bolsistas da Rainforest Investigation Network (RIN), uma iniciativa do Pulitzer Center. Leia a reportagem deles aqui


Depois de finalizarmos nossa investigação de 2022 sobre pistas de pouso ligadas a minas ilegais, tínhamos algumas pistas sobre uma rede criminosa de contrabando de ouro entre a Venezuela e o Brasil. Nós queríamos saber mais sobre o modus operandi e a rede de empresas envolvidas. Criamos bases de dados, analisamos exaustivamente pilhas de processos jurídicos e fizemos reportagem de campo tradicional na Venezuela, no Brasil e nos Estados Unidos. Isso se transformou na nossa investigação seguinte, Os Senhores do Ouro. Nossa principal descoberta foi que o ouro ilegal contrabandeado da Venezuela para o Brasil estava sendo pago com ou trocado por comida durante a maior crise de alimentos da Venezuela.

A investigação ficou entre os assuntos mais falados nas redes sociais e teve destaque em programas jornalísticos na Venezuela e no Norte do Brasil. Agências da ONU e outras organizações internacionais entraram em contato conosco para entender as principais descobertas da investigação e incluí-las em seus relatórios e políticas. Um fato curioso é que algumas semanas antes da publicação um dos garimpeiros fugiu de sua prisão domiciliar.

Fontes de dados

  • Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ): nesta base de registros, encontramos detalhes sobre as empresas brasileiras por trás da troca de ouro por comida.
  • Bases de dados internacionais com informações de empresas: Sayari, Aleph, Open Corporates.
  • ImportGenius: uma base de dados de importações e exportações que tem filtros de produtos, empresas, origem e destino.
  • Comexstat: sistema com estatísticas do comércio exterior do Brasil. É possível fazer buscas por estado, produto, destino, origem, dentre outras opções. A ferramenta de visualização Comex Vis foi muito útil. Ela nos permitiu entender as características dos registros de exportação de alimentos em Roraima, estado que faz fronteira com a Venezuela.
  • Digesto: serviço pago para acessar processos jurídicos. Uma alternativa gratuita a essa base de dados de documentos de tribunais é o JusBrasil. Em ambos os casos, você pode buscar pelo nome de uma pessoa e a plataforma mostra os processos associados a ela e o tribunal responsável. 
  • Registro Comercial da Venezuela (acesso offline): usamos este serviço para monitorar empresas e pessoas chave por trás da mineração ilegal na Venezuela.
  • Imagens de satélite: usamos o Google Earth, Planet e Earthrise Media.
  • Divisão de Empresas da Flórida: os garimpeiros tinham empresas registradas na Flórida e nós conseguimos obter os detalhes deles neste sistema.
  • UN Comtrade: esta é uma base de dados global de comércio exterior que mostra os dados gerais informados sobre produtos importados e exportados entre países.
  • Redes sociais: analisamos o Instagram, X/Twitter e Facebook para encontrar contatos e detalhes sobre empresas e pessoas.
  • Entrevistas oficiais e extraoficiais com várias fontes. 
  • Reportagem de campo no Brasil, na Venezuela e nos Estados Unidos

Metodologia

As redes informais de contrabando de ouro venezuelano raramente foram retratadas de uma forma sistemática. No nosso projeto anterior, tínhamos usado inteligência artificial para mapear minas ilegais e pistas clandestinas na Amazônia, com o apoio da Rainforest Investigations Network (RIN) do Pulitzer Center. Nesta segunda investigação, tivemos que encontrar uma nova metodologia para documentar os casos fora do país que a Justiça venezuelana não processa, ignora ou até mesmo encobre.

(1) Acesso a processos jurídicos

Nós combinamos processos jurídicos da Venezuela e da cidade de Boa Vista sobre casos de ouro traficado entre minas ao sul do rio Orinoco, nas profundezas da selva venezuelana. Encontramos documentos preliminares na base de dados online do JusBrasil, e com a ajuda de colegas e advogados, conseguimos alguns dos processos, um dos quais tinha mais de 30.000 páginas.

Nós descobrimos que o ouro contrabandeado na fronteira entrava no mercado brasileiro como "sucata de ouro", em referência ao ouro que foi danificado ou que é considerado inutilizado, como joias avariadas. Dessa área da fronteira, o ouro era transferido para uma das principais empresas de exportação de ouro em São Paulo, e de lá para o resto do mundo.

 

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Captura de tela de um dos primeiros documentos jurídicos obtidos via JusBrasil.

Crédito: María de los Ángeles Ramírez, Joseph Poliszuk 

(2) Construção de base de dados

Nós criamos planilhas com base em processos de mais de 30 empresas e 70 pessoas, e cruzamos essas informações com a base de CNPJs do Brasil e os cadastros do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela. 

Por meio de recibos de vendas e transporte e transações bancárias listadas nos processos, nós descobrimos que empresas e parceiros do governador de Roraima, Antonio Denarium, estavam ligados aos fornecedores, beneficiários e membros de máfias que trocavam alimentos do Brasil por ouro da Venezuela. Nós também descobrimos ligações entre grupos mafiosos e crimes cometidos na República Dominicana. Por fim, mapeamos as conexões de negócios das empresas por meio de bases de dados como Sayari, OpenCorporates e Aleph.

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Mapa corporativo de Antonio Fernández Soto, um dos garimpeiros - captura de tela do Sayari

Crédito: María de los Ángeles Ramírez, Joseph Poliszuk 

(3) Trabalho de campo na Venezuela, no Brasil e nos Estados Unidos

Depois de analisarmos todas as informações dos processos, fomos a Boa Vista e Pacaraima, em Roraima, e em Santa Elena de Uairén, em Bolívar, na Venezuela. Algumas das fontes e pessoas envolvidas no comércio estavam relutantes em falar com jornalistas estrangeiros, já que estávamos perguntando-as sobre um problema que não é falado em público e sobre o qual há ações judiciais em curso. 

Mesmo assim, conseguimos ir além das descobertas da Justiça brasileira e mostramos que alguns dos acusados ainda estavam operando negócios na zona de fronteira. Um dos traficantes, Marco Flores, não só continua a administrar um hotel onde houve uma batida policial, como também obteve uma concessão para operar o único posto de gasolina que o governo venezuelano tem na fronteira. Nós confirmamos isso visitando o posto de gasolina e fazendo entrevistas. Nós também cruzamos recibos de pagamentos do hotel com o cadastro CNPJ.

Nós viajamos até a comunidade de Chirikayén na Venezuela e analisamos imagens de satélite para avaliar o impacto ambiental da mineração ligada a um dos garimpeiros. Nós também analisamos dados de importação e exportação do sistema Comtrade, da ONU, e vimos que, à época das sanções ao ouro venezuelano, os Estados Unidos ainda estavam importando o produto.

 

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Uma das minas em La Gran Sabana, Venezuela, que gerou dano ambiental. Ela fica a horas de distância da comunidade indígena de Chirikayén e de outras comunidades indígenas.

Crédito: Airbus DS / Earth Genome


Foto por Dominik Vanyi via Unsplash.

Joseph Poliszuk foi vencedor do prêmio ICFJ Knight de Jornalismo Internacional em 2018.

Este texto foi publicado originalmente pelo Pultizer Center e republicado na IJNet com permissão.