No dia 29 de março de 2008, Isabella de Oliveira Nardoni foi atirada pela janela do sexto andar do apartamento do pai e da madrasta, na cidade de São Paulo. A criança de 5 anos morreu logo depois de chegar ao hospital. Ela tinha marcas no pescoço, lesão na testa e sinais de asfixia. O casal, que sempre negou a acusação, foi condenado por homicídio. O crime que mobilizou a mídia e comoveu o Brasil é detalhado no documentário “Isabella: o Caso Nardoni”, com depoimentos inéditos e detalhes pouco conhecidos.
Micael Langer dirigiu o documentário com Cláudio Manoel e também assina o roteiro. Desde a estreia na Netflix há um mês, a equipe celebra o sucesso de audiência. “Superou todas as expectativas”, diz Langer. O filme chegou ao top five de filmes assistidos nos Estados Unidos na semana de lançamento e alcançou um impressionante primeiro lugar mundial em filmes de língua não-inglesa no ranking da Netflix, além de ter figurado nos “top ten” de mais de 45 países. Micael conversou com a IJNet Português sobre os desafios de contar uma história tão trágica.
1. Qual foi a sua motivação para participar da direção de um documentário sobre um assunto tão difícil?
Nosso interesse como documentaristas é registrar um momento histórico relevante. E particularmente para mim, quanto mais “difícil”, mais estimulante é o processo. Nós escrevemos e dirigimos o documentário “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”, que na época também foi considerado um caso “difícil”, mas para nós era uma história intrigante e sobre a qual tínhamos interesse em aprender mais. E nosso trabalho é justamente tentar aprender mais e repassar o que descobrimos para os espectadores. Eu não encarei essa história como “mais um true crime”, até porque nunca tive um interesse particular nesse tipo de trabalho. Mas o caso Nardoni é diferente dos outros. A comoção, mobilização e engajamento popular foi sem precedentes e o distanciamento histórico nos permitiu tratar do tema de forma mais objetiva. Quanto ao interesse do público, é difícil dizer. O fato é que documentários sobre crimes despertam sim um interesse no público, e isso não sou eu que acho, são os números que mostram. Mas, nesse caso, nós fomos surpreendidos por um alcance internacional do filme que só reforça a ideia de que essa história vai muito além do crime em si.
2. Como separar a emoção do profissionalismo?
É complicado, especialmente quando lidamos com a dor de uma perda que, mesmo depois de 15 anos, ainda se faz presente de maneira arrebatadora. Nós nos emocionamos, somos de carne e osso, mas sabemos da nossa responsabilidade em contar uma história, mesmo tão brutal, da maneira mais respeitosa e responsável possível.
3. Você acompanhou as entrevistas? Qual a parte mais difícil desses momentos?
As partes mais difíceis foram montar, dentro de nossa narrativa documental, as peças desse enorme quebra-cabeças, conforme elas apareciam nos depoimentos e documentos. É um caso muito complexo e com muitas informações desencontradas ou simplesmente contraditórias, e nós sempre tivemos a preocupação de nos mantermos os mais fiéis aos fatos e ao que nos parecia fazer mais sentido. As entrevistas com a família da Isabella foram muito emocionantes, como não poderia deixar de ser, muitos de nós choraram durante as entrevistas, não somos robôs, mas sabíamos que isso não pode se colocar entre nós e o trabalho. Mas houve vários momentos em que, ao final do dia, sentíamos o ar carregado.
4. O que o documentário apresenta que a imprensa não chegou a mostrar?
Temos algumas coisas que a imprensa não chegou a mostrar, mas na grande maioria dos casos isso se deu simplesmente pelo distanciamento temporal e o acesso que tivemos à família Oliveira. Por outro lado, muitas das coisas que a imprensa chegou a dar não puderam entrar no filme por uma questão de minutagem. Teorias absurdas e linhas de “investigação” totalmente irresponsáveis que, na corrida pelo “furo”, acabavam desrespeitando a dor de uma família recém enlutada. O papel da imprensa (e da mídia em geral) no caso é retratado com destaque no filme, porque entendemos que há muito o que se refletir com isso.
5. Vocês buscaram ouvir os dois lados igualmente?
Não podemos considerar ouvir as duas partes “igualmente” porque estamos falando, de um lado, de vítimas de um crime brutal e de outro de pessoas que foram consideradas culpadas desse crime pela justiça. Quanto a darmos espaço para a defesa, achamos que fazia sentido, tendo em vista as questões levantadas pelo documentário. Infelizmente ninguém das famílias Nardoni e Jatobá quis se pronunciar, e por isso decidimos abrir espaço para os advogados de defesa, pois uma das linhas narrativas do documentário é analisar o quanto a comoção popular pode ter pressionado a investigação, ou pelo menos influenciado sua velocidade.
6. O que você acha que a mídia aprendeu a partir da cobertura desse caso? Houve erros por parte da imprensa na época?
Não sei dizer se alguém “aprendeu” algo a partir dessa cobertura. Não podemos nos esquecer que estamos falando de seres humanos por trás desses veículos de comunicação, e até mesmo dos órgãos de segurança pública. Essas pessoas estão sujeitas a eventualmente se deixarem levar pela emoção, mas é necessário o esforço para que isso não afete o resultado do seu trabalho do ponto de vista ético. Não usaria a palavra “erros”, mas com certeza houve excessos.
7. Vocês procuraram fugir do sensacionalismo? Houve algo que precisou ser combinado, por exemplo, com a mãe da Isabela para que a história fosse contada de forma mais respeitosa?
Nunca combinamos nada com nenhum entrevistado em nenhum dos nossos trabalhos, seja para o cinema, TV ou streaming. Em nosso primeiro documentário juntos, sobre o Simonal, nossa abordagem com os filhos do cantor foi a de que revelaríamos tudo o que encontrássemos, mesmo que isso significasse confirmar que ele havia sido, de fato, informante do regime militar, e só trabalharíamos dessa forma. Quanto ao sensacionalismo, não vi necessidade de “fugir” do formato pois não seria algo natural tanto para mim quanto para o Claudio. Retratar o sensacionalismo não significa adotar o sensacionalismo. Inclusive a própria família da Isabella ressaltou a delicadeza e o respeito que perceberam no filme, o que para nós é a maior chancela possível de que conseguimos nos manter equilibrados, tratando de assuntos tão controversos.
8. Como é fazer documentário no Brasil? O que um jovem jornalista/documentarista precisa ter em mente para conseguir emplacar?
Olha, já foi bem mais difícil. Hoje em dia você tem, em primeiro lugar, algo fundamental: público. E isso se dá principalmente pela presença dos streamings, especialmente a Netflix, que estabeleceu e popularizou o formato, especialmente o de séries documentais. Em segundo lugar você tem diferentes plataformas de exibição, desde os streamings pagos até o Youtube, sendo que antigamente você ficava restrito a um circuito limitado em salas de cinema e uma eventual janela em TV paga e venda de DVD. O custo de equipamento também caiu vertiginosamente, além de que há uma fonte inesgotável de conteúdo online ensinando e desmistificando a parte técnica do processo. O que eu quero dizer é que, querendo fazer, hoje em dia, não há desculpa para não fazer. E isso é ótimo!
Foto: Reprodução Netflix