Mia Couto: "O jornalismo tem que reconquistar o seu papel na construção de um mundo melhor”

Jul 31, 2022 em Diversos
Imagem de Mia Couto

No dia 5 de Julho de 1955, na cidade costeira da Beira, no centro de Moçambique, nascia Mia Couto, pseudónimo de António Emílio Leite Couto, um dos mais exaltados escritores africanos no continente e fora do mesmo. Em 2013, foi galardoado com o Prêmio Camões, a maior distinção literária nos países falantes da língua portuguesa. É o único escritor africano eleito para a Academia Brasileira de Letras. Recentemente, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

Com mais de 15 obras publicadas, na sua maioria romances, o escritor moçambicano explora nos seus escritos a identidade cultural africana. Para além de escritor, é poeta e jornalista. Como seu conterrâneo, eu decidi procurá-lo para decifrar algumas curiosidades e opiniões sobre jornalismo e literatura. Não foram apenas as experiências dele que colhi, mas ficam também registadas lições que seguem patentes nesta entrevista que tive o privilégio de fazer com Mia Couto.

1. Como jornalista, você começou a exercer a profissão em 1974, numa altura em que Moçambique estava prestes a alcançar a sua independência. Como foi ser jornalista naqueles tempos?

Tudo era diferente. O país, os órgãos de informação, os jornalistas, o contexto regional e internacional. Fui jornalista por um gosto, mas também por um dever de militância. Recebi instruções para trabalhar num jornal. Não era algo tão estranho para mim. O meu pai foi também um. E o meu irmão mais velho já trabalhava no “Notícias” quando comecei a trabalhar na “Tribuna” em 1974. A “Tribuna” era um vespertino com algumas pretensões de oposição político ao regime colonial. O diretor era o grande poeta Rui Knopfli. Tinham ali trabalhado o José Craveirinha e o Luís Bernardo Honwana. Comigo entraram um grupo de jovens moçambicanos como Luís Patraquim, o Julius Kazembe, o Ricardo Santos, o Benjamim Faduco. Havia um sentido de missão e uma entrega política unânime. Era ali, na redação, que nós queríamos estar durante o dia inteiro, sem olhar a horas nem a salário. Havia um propósito nacional a conquistar. Havia uma revolução socialista que nos empolgava. Foi um outro tempo. Eu mesmo não repetiria essa façanha.

2. O que o fez largar as leads e a abraçar a escrita literária?

Deixei de acreditar na verdade da causa que me tinha levado a deixar os estudos universitários e a prescindir de um sonho que era ser psiquiatra. Mas não tenho ressentimento nenhum. Pelo contrário. Sou devedor a esse tempo de revolução. Não tirei lucro pessoal nenhum, mas cresci como pessoa, sabendo que apenas sou quem sou por causa da relação com os outros. E aí, o jornalismo foi uma importante escola. Ensinou a ler este imenso país, com a sua enorme diversidade e complexidade. O labor jornalístico foi uma escola para o meu exercício literário. No sentido técnico do termo (eu sabia que estava a escrever para alguem, a presença desse destinatário era quase imediata). E no sentido mais profundo do termo, eu fazia entrevistas e reportagens para revelar a existência de pessoas e das suas histórias de vida. Já tinha, sem o saber, um pé na literatura.

O labor jornalístico foi uma escola para o meu exercício literário.

3. Há mais de 30 anos que Mia Couto deixou de ser jornalista. De lá até cá, sente que o jornalismo sofreu transformações e quais seriam?

MC: Houve mudanças profundas no jornalismo mundial. No caso moçambicano, foi bom terem aparecido órgãos de informação independentes. Há quem questione esse termo “independentes” porque haverá alguém por trás deles. Mesmo que assim seja, é bom que haja diferentes poderes com capacidade de produzir diferentes pontos de vista. Mas acho que se reduziu muito aquilo que acho que é o coração do jornalismo: a reportagem e o jornalismo de investigação. O maior do espaço informativo das rádios e das televisões e a maior parte do espaço dos jornais é entre a talk-shows e fabricadores de opinião. Ora, os próprios leitores e espectadores devem ter o direito de, em primeiro lugar, ter acesso a informação que resulte do trabalho de bons profissionais. Não precisa que, em seu nome, mastiguem a opinião sobre factos que, por vezes, não são devidamente divulgados.

Há quem questione esse termo “independentes” porque haverá alguém por trás deles. Mesmo que assim seja, é bom que haja diferentes poderes com capacidade de produzir diferentes pontos de vista.

4. O jornalismo no mundo foi “invadido” nos últimos anos por “influencers” que se consideram divulgadores de notícia e pelas “fake news”. O que você acha disso?

Na verdade, houve um empobrecimento geral da produção e do debate de ideias em toda a sociedade. O pensamento virou mercadoria barata. Deixou de ser crítico e produtivo. O clima geral de intolerância e a polarização política substituíram o debate pelo insulto, a busca da verdade pela produção da calúnia e do medo. Vai ser difícil sair desta situação porque as fake-news rendem do ponto de vista ideológico, monetário e político. Os políticos populistas e os ditadores de extrema-direita lucram desse ambiente de crise e de guerra permanentes. Ninguém quer saber as verdadeiras causas de um fenómeno social. Quer-se saber quem é o culpado.

5. A liberdade de imprensa em Moçambique é nova e se confunde com a própria democracia também emergente no país. Será que esta liberdade é efectiva?

É formalmente efectiva. Mas é preciso dizer-se que, foi o quadro desta liberdade que jornalistas como o Carlos Cardoso foram assassinados. Outros foram ameaçados e molestados. Nem sempre essas ameaças provêm do poder político. Mas de gente poderosa que se sente impune. Não pode haver liberdade de informação enquanto, ao mesmo tempo, houver liberdade e impunidade para com os que maltratam os jornalistas. Muitas vezes, esta relação de ameaça não se manifesta contra pessoas. Mas o próprio mercado vai ditando normas que são pouco democráticas. Por exemplo, na maior parte dos jornais, das revistas e dos programas radiofónicos e televisivos, foi-se reduzindo e empobrecendo o espaço para arte e cultura. E para a defesa dos direitos cívicos.

Não pode haver liberdade de informação enquanto, ao mesmo tempo, houver liberdade e impunidade para com os que maltratam os jornalistas.

6. O jornalista Carlos Cardoso assassinado no ano 2000 é considerado um dos símbolos do jornalismo investigativo em Moçambique. Como avalia o jornalismo de investigação na actualidade e à violência contra jornalistas?

Não creio que esse jornalismo tenha sobrevivido na maior parte dos países. Eu acho que o medo venceu. Depois de anos em que imperou a ameaça contra toda e qualquer autoria de uma pesquisa jornalística, qualquer que fosse a sua qualidade, não há jornalismo que prevaleça. Há muito tempo que não vejo um bom artigo de investigação nem em Moçambique nem na maior parte dos territórios em que se procura por informação. Restam os grandes canais como a BBC e Al jazeera. E mesmo, nesses casos, percebe-se que há uma janela estreita onde o jornalista se pode espraiar.   

7. Como escritor você conseguiu muitos admiradores pelo mundo. No Brasil, por exemplo, há muitos fãs do seu trabalho. Como você encara a fama?

A fama é um veneno, uma viciação que nos pode afastar de nós mesmos e das pessoas. É muito triste que eu vá a uma escola e as crianças fiquem apenas fascinadas pelo facto de poderem ter fama e terem sucesso. Talvez porque vivamos num mundo em que a maioria das pessoas estão condenadas a viver uma vida inteira sem brilho nem visibilidade. E vale tudo nessa luta ilusória para se alcançar a fama. Há pessoas que me cumprimentam e congratulam e não sabem nada do que eu faço, nunca leram uma linha do que escrevi. Tem o seu lado bom que é a ilusão de que se vive numa aldeia em que as pessoas se reconhecem e são próximas. Mas é uma mentira, porque nem as pessoas conhecem realmente quem somos, nós os escritores ou os artistas. E mais grave ainda, nem sempre os artistas querem realmente conhecer a pessoa que os saúda e se declara fã. Não quero ter fãs. Quero conhecer pessoas e descobrir amigos.

A fama é um veneno, uma viciação que nos pode afastar de nós mesmos e das pessoas. É muito triste que eu vá a uma escola e as crianças fiquem apenas fascinadas pelo facto de poderem ter fama e terem sucesso.

IJNET: Que conselhos deixa para os novos jornalistas?

MC: Que tenham respeito pela verdade. E que defendam essa verdade a todo o preço. Não se deixem comprar. O jornalismo tem que reconquistar o seu papel na construção de um mundo melhor.


Foto: Fundação Fernando Leite Couto.