Quando o nome de pessoas suspeitas de crimes aparecem em uma reportagem, a vida delas pode ser destruída e nunca mais ser restaurada.
Por anos, pessoas imploraram à Associated Press (AP), para que a agência removesse dos arquivos os erros cometidos por elas. Alguns desses pedidos "eram de partir o coração", conta John Daniszewski, vice-presidente de qualidade da AP que ajudou a liderar a nova política da agência de notícias.
Reconhecendo que o jornalismo pode gerar feridas desnecessariamente, a AP não vai mais informar o nome de pessoas presas por crimes pequenos quando a agência não puder cobrir o desdobramento da notícia. Na maioria das vezes, a publicação dessas matérias está ligada a uma peculiaridade estranha ou divertida e os nomes dos envolvidos são irrelevantes. Porém, as consequências podem ter bastante peso e serem duradouras para as pessoas mencionadas.
A quantidade de detalhes que os repórteres nos Estados Unidos incluem em uma reportagem sobre um crime depende do grau de noticiabilidade da história, de acordo com a nossa pesquisa. Um fato menor pode se basear unicamente em um boletim de ocorrência da polícia. Uma ocorrência grave, aquele tipo que é discutido na hora do cafezinho, pode incluir entrevistas com pessoas familiarizadas com a história e provas mais concretas sobre o passado da pessoa suspeita. Seja uma matéria sobre um crime grave ou leve, a maioria dos relatos na imprensa dos Estados Unidos inclui a identificação completa do acusado.
"Eu recebi uma carta muito comovente de um homem que, quando estava na faculdade, se envolveu em um crime financeiro", recordou Daniszewski durante a entrevista que nos concedeu.
Quando uma notícia antiga sobre o caso voltou à tona, o homem perdeu amigos. Até o seu casamento, que estava prestes a acontecer, ficou ameaçado até que ele conseguisse convencer a noiva e a família dela que ele tinha aprendido com a experiência e não era um vilão incorrigível.
Para outras pessoas, matérias sobre seus supostos crimes apareceram em buscas do Google 10 ou 15 anos após o incidente, mesmo sem elas terem sido declaradas culpadas ou a Justiça tendo removido os processos criminais. Daniszewski conta que muitas pessoas que recorreram à AP foram presas por pequenos delitos com drogas, como apreensão de pequenas quantidades de maconha, mas as matérias sobre esses delitos as estavam impedindo de conseguir empregos, alugar apartamentos e mesmo encontrar pessoas em aplicativos de namoro.
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Mudança de cultura
A Associated Press, maior agência de notícias dos Estados Unidos, foi fundada em 1846. É uma empresa cooperativa cujos membros incluem a maioria dos grandes veículos de notícias dos Estados Unidos e de vários outros países.
A nova política da AP sinaliza uma mudança na cultura e na política dos Estados Unidos. Ela dá um pequeno passo à frente da tradicional prática do "conte tudo" na cobertura de crimes no país. Ela abrange um pouco da empatia com malfeitores demonstrada por repórteres em alguns países europeus.
Nós entrevistamos quase 200 repórteres e especialistas de mídia em 10 países da Europa Ocidental e da América do Norte para o nosso livro "Murder in Our Midst: Comparing Crime Coverage Ethics in an Age of Globalized News" (Assasinato em nosso meio: Comparando a Ética da Cobertura de Crime em uma Era de Notícias Globalizadas", em tradução livre). Nós descobrimos diferenças significativas em práticas jornalísticas, apesar das semelhanças nas instituições e valores democráticos desses países.
Os códigos de ética da imprensa alemã, holandesa e sueca encorajam a proteção da identidade tanto do suspeito quanto dos condenados. Esses códigos são largamente voluntários e permitem a cada meio de comunicação fazer decisões caso a caso, mas a prática padrão é não identificar as pessoas.
Nestes países, jornalistas ocultam os nomes completos daqueles presos ou mesmo condenados por crimes, exceto em casos que envolvam figuras públicas ou crimes com interesse público específico. Em vez disso, os textos incluem apenas as iniciais ou o primeiro nome e a inicial do último sobrenome para proteger a pessoa.
Desde 1973, tribunais alemães determinaram que reportagens evitem identificar presidiários quando estiverem prestes a serem soltos para permitir sua "ressocialização" e "direito à personalidade" ou reputação.
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Dano irreparável
Quando perguntamos a uma editora da ANP, equivalente holandesa da AP, por que sua equipe ocultava nomes rotineiramente, ela fez uma pausa e então disse: "E se eles tiverem filhos? Eles não fizeram nada de errado", e ainda assim sofreriam um dano irreparável por serem rotulados como filhos de criminosos.
Ao mesmo tempo em que repórteres alemães, holandeses e suecos expressaram preocupações semelhantes pelas famílias, eles também disseram que queriam preservar a presunção da inocência daqueles que eram meramente acusados e a possibilidade de retomar uma vida produtiva por aqueles que foram condenados.
Quando a editora holandesa ficou sabendo da quantidade de detalhes profundamente pessoais que os repórteres dos Estados Unidos comumente publicam sobre pessoas presas, ela engasgou diante de algo que considerou cruel e antiético. "Por que você faria isso com alguém?", ela perguntou.
A maioria dos repórteres nos Estados Unidos que nós entrevistamos se arrependiam do dano que essas revelações causaram, mas viam suas práticas como um efeito colateral. Na visão deles, a obrigação principal é agir como um cão de guarda sobre a polícia e o governo. Eles acreditam que as pessoas têm direito a informação pública, e não se deve confiar à polícia o poder de fazer prisões não divulgadas. Esse comprometimento é muito mais profundo nos Estados Unidos do que na Holanda. De acordo com a maioria, "nós confiamos no nosso governo", disse um membro do sindicato dos jornalistas da Holanda.
A ética do cão de guarda tem um peso grande na AP, conforme nos disse Daniszewski. No entanto — como mostrou a pesquisa para o nosso livro — a ética e as práticas jornalísticas estão enraizadas na cultura. E o "zeitgeist" dos Estados Unidos em relação à justiça criminal está mudando, segundo Daniszewski.
Em 2018, o The Plain Dealer, jornal de Cleveland, começou a considerar petições para remover algumas reportagens de seus arquivos. A iniciativa Fresh Start, do Boston Globe, fez um movimento parecido neste ano. Estes são passos pequenos quando comparados à garantia da União Europeia de que os cidadãos têm o "direito ao esquecimento" ao terem pelo menos algumas matérias humilhantes removidas dos arquivos dos buscadores de internet.
Figuras públicas
Jornalistas dos 10 países que pesquisamos concordam que o público precisa saber quando políticos são acusados de crimes ligados às suas obrigações oficiais.
Quando um político ou uma celebridade supostamente comete um crime, como um atropelamento com omissão de socorro, a maioria dos jornalistas da nossa amostra concorda que a imprensa deve dar nome aos envolvidos. A imprensa também deve atribuir culpa quando crimes políticos afetam o bem-estar público, disseram os jornalistas.
Porém, repórteres holandeses e outros muitas vezes fazem vista grossa quando celebridades ou políticos são acusados de violência doméstica ou assédio sexual, o que eles consideram ser de ordem privada. Repórteres dos Estados Unidos são mais propensos a considerarem esse tipo de notícia.
Indivíduos privados cometendo crimes, inclusive crimes graves, raramente são identificados em grandes meios de comunicação na Holanda, Suécia ou Alemanha, apesar dos nomes dessas pessoas estarem em registros públicos e poderem ser potencialmente reveladas por tabloides ou sites. Uma razão: "Nós acreditamos que todo mundo merece uma segunda chance", diz Thomas Bruning, chefe do sindicato dos jornalistas da Holanda.
Há um sentimento parecido ganhando força nos Estados Unidos?
Os Estados Unidos encarceram criminosos em lugares que nós chamamos de "penitenciárias", diz Daniszewski — ou seja, lugares para penitência. O termo pode trazer implícita a ideia de que o perdão poderia vir na sequência, mas o fato é que criminosos ficam estigmatizados por toda a vida, ele afirma.
A AP nunca vai pegar leve com histórias de crimes sérios nem ocultar corrupção, ele promete. Mas ao falar da nova política da AP, ele diz que "nós pensamos que se pudéssemos causar menos dano e dar uma segunda chance às pessoas, seria por uma boa razão".
Maggie Jones Patterson é professora de jornalismo na Duquesne University. Romayne Smith Fullerton é professora associada de informação e estudos de mídia na Western University.
Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o texto original.
Foto por Tingey Injury Law Firm no Unsplash.