Um espaço para jornalistas LGBTQ+ na Índia

Mar 20, 2024 em Diversidade e Inclusão
Man with raindbow umbrella at a protest

Quando o jornalista Ankur Paliwal era pequeno, vivendo no norte da Índia, as únicas manchetes que ele via mencionando indianos que eram queer - nem heterossexual nem cisgender - focavam em crimes. Também eram populares artigos sobre membros da comunidade LBGTQ+ que fugiam com seus parceiros, casos que eram relatados no mesmo estilo da cobertura de crimes.

Paliwal sentia que a mídia tinha uma fascinação praticamente como a de um zoológico diante da comunidade LGBTQ+ e informava sobre ela como se fosse algo a ser condenado ou observado. "A linguagem de desumanização era tão aparente. Isso era uma coisa que me incomodava muito", diz.

Ao estabelecer sua carreira como repórter, Paliwal cobriu questões relacionadas à ciência e saúde. A sexualidade na maioria das vezes era considerada irrelevante nessas pautas, e Paliwal não podia fazer abertamente conexões com a comunidade LGBTQ+ em suas matérias sem se revelar queer. Ele sentia que tinha que negociar constantemente sua identidade e manter sua sexualidade privada enquanto trabalhava. "Como um jornalista de ciência, eu tinha dificuldade de incluir fontes diversas nas minhas matérias porque instituições científicas não são um espaço seguro para pessoas queer se assumirem", diz. 

Paliwal acrescenta que a mídia na Índia está infestada de práticas discriminatórias. "A mídia na Índia tem sido historicamente dominada por pessoas cisgênero heterossexuais. Nos espaços de liderança, eles decidem quais histórias são contadas, quais vozes são elevadas, quem é digno de receber cobertura", diz. "Por não serem da comunidade queer, não estão fazendo as perguntas certas nem gastando tempo com a gente."

Observando essas disparidades, Paliwal lançou em novembro de 2022 o queerbeat para contar uma variedade maior de histórias sobre comunidades queer na Índia, muitas vezes invisibilizadas.

"Eu achava que o debate público sobre comunidades queer precisava de histórias mais precisas e diversas", diz Paliwal. "Essa é a coisa mais difícil que já fiz em meus 13 anos de jornalismo. Eu nunca tive tantas noites sem dormir em um ano."

Apropriando-se de narrativas LGBTQ+

Criado na Índia, o queerbeat foca exclusivamente em narrativas LGBTQ+ no país. 

Combinando conteúdos de formato longo com insights críticos de repórteres e autores que também são queer, a publicação já cobriu questões complexas como injustiças habitacionais, violência étnica, jovens queer que são cristãos revisitando sua fé e a falta de infraestrutura para os mais velhos.  

"Estamos criando e demandando um espaço para a nossa própria comunidade. Eu tinha muita clareza de que não queria fazer as mesmas narrativas que já existem", diz Paliwal. "Nós conseguimos contar essas histórias diversas porque nós vemos essas histórias."

O queerbeat se tornou mais que somente uma plataforma que destaca histórias LGBTQ+; hoje é também um espaço seguro para seus colaboradores, que frequentemente sofrem tratamento injusto no ambiente de trabalho. Os veículos indianos têm sido criticados por sobrecarregar e pagar mal seus funcionários, ao mesmo tempo deixando-os desprotegidos. Muitas vezes, também, jornalistas não conseguem trabalhar com temas sensíveis que podem prejudicar as relações políticas ou financeiras dos veículos onde trabalham.

O jornalista independente Anmol Arora vivenciou isso diretamente. "Era difícil permanecer em redações tradicionais. Em um lugar me falaram: 'não sou seu editor, sou seu gerente'", diz Arora. "Eu também não sentia que podia sugerir pautas que fossem sobre minha comunidade."

Arora começou a fazer trabalhos freelance para o queerbeat em outubro do ano passado e agora é chefe de engajamento de audiência. Um forte respeito mútuo sustenta seu apreço por trabalhar no site.

"O Ankur é um líder excelente que estimula independência, colaboração saudável e um senso de propriedade em todos nós que trabalhamos com ele", diz.

Melhoria da relação editor-repórter

O queerbeat prioriza o bem-estar e a flexibilidade no trabalho com os colaboradores do site, explica Shruti Sunderraman, subeditora da publicação. No esforço para assegurar a segurança dos jornalistas e qualidade das matérias, os editores entendem que os colaboradores podem levar mais tempo para entregar os textos.

"Eu tive uma emergência médica em casa e minhas responsabilidades como cuidador fizeram com que eu levasse mais tempo para atender meus prazos. Nunca me fizeram sentir culpado por causa disso", diz o freelancer Chintan Girish Modi.

O site também demanda que os editores concentrem-se em tratar matérias como oportunidades para construir relações com os jornalistas em vez de focar só na publicação dos textos, diz Sunderraman.

"É revolucionário prestar atenção ao processo e não só aos resultados", diz Visvak P, editor colaborador do queerbeat.

Superação de desafios

Não faltam desafios que o site encontrou desde o lançamento. Dentre eles, a equipe reconheceu seus próprios defeitos, admitindo a necessidade constante de evoluir.

"Um momento de tomada de consciência ocorreu quando um colaborador apontou que nossa liderança é composta por pessoas de castas privilegiadas", diz Paliwal. "Isso levou a muita reflexão interna e algumas decisões para garantir que nossa liderança seja o mais diversa possível e à criação de um conselho interseccional ao qual eu respondo."

A sustentabilidade financeira é outro desafio para a redação. "O grande problema que enfrentamos é o financiamento, e para um produto de nicho como o queerbeat, isso é ainda mais desafiador porque a maioria dos financiadores quer trabalhar com uma mídia com foco em uma audiência grande", diz Paliwal.

Ao mesmo tempo, garantir que os colaboradores sejam compensados justamente por seu trabalho também impacta a sustentabilidade da publicação. "Nós investimos muito em cada matéria porque também queremos pagar os repórteres, editores e ilustradores justamente", diz Paliwal. "Ainda estou tentando descobrir como continuar arrecadando fundos, mas as mensagens carinhosas que recebemos dos nossos leitores me encorajam a seguir em frente."

Transformando o jornalismo na Índia

Os resultados priorizados pelo queerbeat demonstram um comprometimento com a transformação das atuais condições injustas do jornalismo indiano.  

Por exemplo, os editores são transparentes sobre o quanto pagam para os freelancers, valores mais altos que o de vários veículos grandes, diz Modi. Os direitos autorais ficam com os próprios jornalistas, o que é raro, de acordo com alguns freelancers indianos, e os colaboradores do queerbeat recebem mentoria ao longo do processo de edição. 

"O queerbeat me ajudou a crescer como autor. Eu raramente tenho essa expectativa com uma publicação porque o ciclo de notícias é como um monstro que precisa ser alimentado e há pouco tempo para os editores serem mentores", diz Modi.

Com remuneração acima do padrão da profissão, foco preciso em destacar narrativas com pouco espaço na mídia, uma capacidade interna de prestação de contas e uma relação mentor-mentorado com os colaboradores, o queerbeat tem sido um respiro de ar fresco para todos os envolvidos.

"Afirmar a identidade queer é central no processo editorial do queerbeat. Eu sinto que sou visto, ouvido e valorizado", diz Modi. "Minha experiência de vida foi bem vinda em vez de ser considerada um obstáculo na produção do trabalho jornalístico."

O veículo está tentando não só transformar o jornalismo queer, mas como o jornalismo como um todo é feito. "Um bom norte para você se orientar é simplesmente fazer-se a pergunta: 'estou sendo útil?'", diz Paliwal.


Foto por Divya Jain via Unsplash.