Twitter Files Brasil: um histórico desastre jornalístico 

Apr 14, 2024 em Combate à desinformação
Suprema Corte Brasil

Elon Musk causou um pandemônio na internet do Brasil. Entre o sábado e o domingo da primeira semana de abril, o dono do Twitter usou sua conta na rede social – onde controla quais posts serão mais vistos pelos usuários no mundo todo – para fazer graves acusações contra um ministro do Supremo Tribunal Federal do país.

Musk disse que o ministro Alexandre de Moraes estava se transformando em um tirano do judiciário por conta de decisões do ministro pedindo o bloqueio de contas no Twitter. As contas, pouco mais de uma dezena, pregavam golpe de estado no país.

Influência do Twitter no cenário eleitoral brasileiro

Os posts no Twitter alimentaram uma massa de pessoas ao longo de 2022. Em 8 de janeiro, o barril de pólvora explodiu, quando estas pessoas saíram do principal acampamento golpista localizado em Brasília, a capital do país, para tentar um golpe de estado. Semelhante ao fatídico 6 de janeiro nos Estados Unidos, a invasão ocorreu nos prédios do Congresso brasileiro, do Supremo Federal  e do Poder Executivo Federal. Os invasores depredaram as instalações, atacaram e quase mataram policiais. Tudo para tentar manter o candidato derrotado das eleições, o então presidente Jair Bolsonaro, no poder.

Diversos posts e vídeos foram postados no Twitter pedindo golpe militar e assassinato de pessoas da oposição, chamadas, muitas vezes, de “comunistas”. O desejo daquelas pessoas era por uma intervenção das forças armadas, evitando que o candidato vencedor, Luís Inácio Lula da Silva, pudesse assumir o governo. Um movimento por um golpe de estado alimentado por posts que corriam livremente na rede de Musk. Pedir que as forças armadas atuem contra a democracia e tentar derrubar um governo eleito é crime no Brasil.

A constituição e as leis do país foram elaboradas no final dos anos 1980 depois de duas décadas dos horrores de uma ditadura sanguinária comandada por militares que mataram, torturaram, estupraram e sumiram com pessoas – até hoje, pais, mães, irmãos, maridos e esposas procuram pelos restos mortais de seus entes queridos. Até mesmo crianças foram submetidas a torturas e desaparecimentos. Muitos dos perfis bloqueados e de seus seguidores ostentavam camisetas de torturadores da ditadura militar.

Miscelânia de acusações infundadas

O que se seguiu naquele primeiro final de semana de abril na conta de Elon Musk no Twitter foi uma série de tuítes ou retuítes onde o dono da plataforma acusou o ministro Moraes de "trair a constituição" usando de "censura agressiva" em um caso que "parece violar a lei e a vontade do povo do Brasil". Musk chegou a pedir o impeachment do ministro, o qual acusou de “criminoso” e protagonista das “exigências mais draconianas de qualquer país da Terra!”. Em um ato de provocação agindo como um verdadeiro troll, Musk disse que em breve desbloquearia do Twitter todas as contas dos golpistas.

Musk inflamou a rede e promoveu o caos para dar luz ao Twitter Files Brasil, uma série de acusações feitas dias antes pelo jornalista Michael Shellenberger, autor de uma série de posts que mostravam trocas de e-mails do time jurídico do Twitter no Brasil com seus colegas em San Francisco. Nos e-mails, os advogados debatiam decisões do ministro e outros processos que a rede vinha recebendo no Brasil. Até aquele final de semana, o Twitter Files Brasil era um fracasso de repercussão pública, sobretudo porque a qualidade das provas das acusações feitas por Michael Shellenberger eram muito baixas ou inexistentes. Mas tudo mudou depois dos tuítes de Musk.

No mesmo fim de semana, Alexandre de Moraes emitiu uma sentença incluindo Musk em uma investigação criminal e reiterando que as contas bloqueadas pela Justiça não poderiam ser desbloqueadas, sob pena de multa. Era tudo o que o troll Musk precisava para escalar o caos. O assunto tomou conta da imprensa e das conversas em redes sociais, levando até mesmo o presidente Lula a reagir, dizendo que Musk estava interferindo na democracia brasileira e lembrando que o bilionário “nunca produziu pé de capim” no Brasil.

Eram duas as principais acusações de Michael Shellenberger contra Moraes: 1. O ministro teria ordenado que o Twitter bloqueasse contas mas que fingisse que a decisão tinha sido da plataforma; 2. o ministro teria ameaçado prender o advogado do Twitter no Brasil caso a empresa não passasse à Justiça dados pessoais de usuários. O problema é que as duas acusações se mostraram absolutamente falsas.

Admitidas as acusações sem provas

Dias depois que elas já tinham se espalhado como pólvora em chamas pelo país, Shellenberger precisou admitir que Moraes jamais tinha ameaçado prender o advogado do Twitter no Brasil. No dia 11 de abril, cedo pela manhã, ele escreveu em sua conta na rede de Musk: “CORREÇÃO: Acima escrevi: "Alexandre de Moraes e outros funcionários do governo ameaçaram processar criminalmente o advogado do Twitter no Brasil se ele não entregasse informações *privadas* e *pessoais*..." Isso está incorreto. Não tenho provas de que Moraes tenha ameaçado processar criminalmente o advogado brasileiro do Twitter.”

O pedido, na verdade, tinha sido feito pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Os procuradores, usando suas prerrogativas legais, queriam informação sobre um usuário do Twitter investigado por ser membro de um dos principais cartéis de drogas do mundo, o PCC. O Twitter se negou a passar as informações. O caso não tinha nenhuma relação com a Suprema Corte ou com o ministro Moraes.

A outra acusação – de que Moraes teria “forçado” o Twitter a mentir sobre o bloqueio de contas – também caiu por terra quando veio à tona que a decisão judicial referida por Michael Shellenberger era antiga (havia sido publicada ainda em janeiro de 2023) e que, nela, Moraes pedia o bloqueio de uma dezena de contas e demandava segredo de justiça – expediente comum no Brasil e nas demais democracias do mundo em casos de investigações em andamento. O Twitter Files havia causado um estrago enorme no Brasil, dando alimento para que a direita no Congresso derrubasse até mesmo um projeto de lei para regular o uso de redes sociais no modelo do que existe na União Europeia, no Canadá, na Austrália e no Reino Unido. O trabalho jornalístico que baseou o escândalo, no entanto, estava apoiado em dois pés de barro.

Como se não bastasse, Michael Shellenberger e outro jornalista brasileiro que participou da confecção do Twitter Files Brasil foram convidados a falar no Senado brasileiro. No dia 11 de abril, David Ágape – um ex-agente penitenciário que prestou serviços para a deputada de extrema-direita Carla Zambelli, uma das mais fortes aliadas de Jair Bolsonaro – disse ao vivo em rede de TV nacional que o cartel PCC tinha explodido uma bomba na Bolsa de Valores para ajudar na eleição de Lula. O problema é que o atentado jamais aconteceu. Ágape fez um desmentido parcial em seu Twitter, dizendo que havia publicado uma “longa reportagem sobre o caso”. Ele ainda tentava ligar o PCC ao partido de Lula, o PT. Uma leitura atenta de seu artigo mostra que as próprias fontes citadas por ele, entre elas a revista Veja, a maior revista do país, deixam evidente que não houve nenhuma ligação do plano do PCC de explodir a Bolsa de Valores por causa de Lula.

Do ponto de vista político, o Twitter Files Brasil foi um sucesso para a extrema direita, capturando atenção do público e jogando dúvidas sobre a Suprema Corte do país. Deputados e atores políticos usaram o tema para tentar vender no exterior que o Brasil está “à beira de uma ditadura”. Do ponto de vista jornalístico, é um caso para entrar para os manuais de jornalismo e para as aulas em universidades sobre o que não fazer na nobre arte de informar o público.


Foto: Gustavo Leighton no Unsplash + montagem Canva