Para cobrir estupro sem sensacionalismo, jornalistas precisam de treinamento ético

por Sahar Majid
Oct 30, 2018 em Temas especializados

A IJNet conversou duas vezes com Kamal Siddiqi, um veterano jornalista da imprensa escrita no Paquistão e diretor do Centro de Excelência em Jornalismo (CEJ, em inglês), que organiza treinamentos para jornalistas no Paquistão e planeja oferecer o primeiro programa de mestrado em jornalismo do país.

Um dos objetivos do CEJ (que é apoiado pelo Centro Internacional para Jornalistas) é proporcionar formação prática para os jornalistas paquistaneses, ajudando-os a melhor interagir com o público. Abaixo estão trechos das conversas da IJNet com Siddiqi sobre um problema comum enfrentado por redações em todo o mundo: a produção de uma cobertura sensacionalista para atrair cliques. Como Siddiqi explicou, este tem sido particularmente evidente na cobertura da mídia paquistanesa sobre casos de violência sexual.

IJNet: Como jornalistas podem identificar uma matéria sensacionalista?

Siddiqi: O sensacionalismo é quando você tira uma história de contexto ou dá algum tipo de significado diferente do que deveria ter. Temos um monte de jornalistas que fazem isso no Paquistão, principalmente porque há uma grande guerra pela audiência. E, em muitos casos, é um problema porque daí você vai ter matérias com informações adicionadas que não são verdade. Isso só vai contra o propósito do jornalismo.

Algumas das organizações de mídia mais respeitadas no Paquistão não têm ética em casos de agressões. Por exemplo, em uma matéria sobre o caso de estupro de uma enfermeira em 2010, o Dawn News mostrou o rosto da vítima na TV quando estava em uma cama de hospital. Além disso, em 2013, uma menina de 5 anos foi estuprada em Lahore e seu nome foi revelado, seu rosto foi mostrado e seu pai foi entrevistado na TV. Como é a lei de proteção de estupro no Paquistão? Se os jornalistas ou organizações de notícias violam a lei, há consequências graves?

Divulgar o nome das vítimas de estupro ou entrevistar a família não são uma ofensa criminal. São mais uma questão de ética, não de lei. Em termos de lei, o recurso legal é a lei de difamação, que é fraca e em grande parte não cumprida no Paquistão. O que temos visto é que ao longo dos anos, por meio de treinamento e conscientização e envolvendo os diretores e editores de notícias, a prática de dar o nome das vítimas de estupro ou menores envolvidos em delitos de qualquer espécie tornou-se mínima. Há ainda alguns jornais e canais de TV que continuam a prática para ter popularidade, mas eles são uma minoria.

Acha que cobrir casos de violência sexual para a TV é mais desafiador do que para a mídia impressa?

Sim. A pressão na TV é mais para dar visuais e detalhes. Além disso, a qualidade do jornalismo praticado nos meios de difusão deixa muito a desejar. Há pouca formação ou sensibilização. Mas isso está mudando agora.

O que acha que são as principais razões por trás disso?

O maior problema é a falta de treinamento em ética e direito. A maioria dos praticantes do jornalismo no Paquistão não tem diploma. Pouquíssimos têm algum treinamento formal na profissão. Este é um desafio que estamos tentando resolver através de uma série de plataformas. No CEJ, onde realizamos cursos mensais para jornalistas, fazemos questão de realizar uma sessão sobre a lei de imprensa e ética, bem como sobre a segurança da mídia. Estes são os dois desafios para a mídia no Paquistão hoje. Há outras plataformas, nomeadamente a Coalition for Ethical Journalism e a Pakistan Coalition for Media Safety, que também trabalham com essas questões.

No caso de um estupro em 2010 de uma enfermeira, a mulher foi estuprada pelo médico na sala de plantão. Ao reportar esta história, um repórter da Dawn TV disse: "Há uma questão que precisa ser respondida: por que a enfermeira foi para a sala de plantão do médico?" Ele disse isso em um tom muito crítico. Como acha que as expectativas sociais influenciam a forma sobre como os jornalistas reportam casos de estupro? 

Apenas 5 por cento dos jornalistas trabalhando no Paquistão são mulheres. Mas esse percentual está mudando agora e mais mulheres estão entrando na profissão. Concordo que quando as mulheres cobrem um caso de estupro, há mais sensibilidade envolvida. Eu sei por experiência própria: quando atribuo uma repórter mulher para cobrir um caso de estupro depois de um repórter policial do sexo masculino fazer o trabalho típico de julgamento, isso mostra como reportagens podem mudar com base em quem está cobrindo a história. O desafio maior é garantir que cada repórter -- homem e mulher -- seja capaz de reportar com sensibilidade e consistência.

Se os jornalistas recebem uma formação adequada, acha que podem trazer mudanças substanciais sobre como os casos de agressão são cobertos no Paquistão?

Sim, eu acredito que isso vai acontecer.

Quais devem ser os principais componentes de um programa de formação em jornalismo para jornalistas que cobrem casos de violência sexual?

Ética. Lei. Segurança de mídia. Eu recomendaria também aconselhamento para aqueles que cobrem trauma.

As entrevistas da IJNet com Kamal Siddiqi foram editadas e condensadas para maior clareza.

Imagem principal sob licença CC no Flickr via Darren Shaw