Os limites estão ficando confusos. O ponto onde termina o jornalismo tradicional e começa a criação de conteúdo não é mais uma fronteira clara, mas sim uma linha dinâmica que demanda um novo mapa ético. Com os jornalistas adotando ferramentas e o posicionamento de influenciadores, e com os influenciadores fazendo trabalho jornalístico, como os valores centrais do jornalismo se traduzem nesse cenário digital fluido e acelerado?
Durante o Festival Internacional de Jornalismo em Perúgia, na Itália, jornalistas que se tornaram criadores de conteúdo discutiram os dilemas práticos enfrentados diariamente por inovadores da mídia que tentam informar com credibilidade, principalmente para o público jovem, que cada vez mais busca informação para além dos veículos tradicionais. Para esses profissionais, trabalhar nesse cenário significa desafiar pressupostos de longa data e estabelecer novas diretrizes baseadas em transparência e rigor.
Prioridade ao rigor em vez de rótulos
No mercado de criação de conteúdo, cargos tradicionais parecem ter menos peso perante o público do que a essência do trabalho. O debate em Perúgia, realizado durante o painel "Ética jornalística no mercado de criação de conteúdo" começou abordando a relação, por vezes inquietante, entre os termos "jornalista" e "influenciador".
Sruthi Gottipati, que está criando uma startup de jornalismo focada na geração Z, SpotOn, argumentou contra o apego a rótulos. "Eu não acho que as pessoas se importam tanto assim com rótulos", disse. "Eu uso as palavras 'influenciadora' e 'criadora de conteúdo' de forma intercambiável. O que mais importa é o tipo de trabalho que você está fazendo, que tenha aquele rigor jornalístico que nos foi ensinado."
Ela diz que os valores centrais do jornalismo — responsabilidade, transparência, verdade e imparcialidade — são essenciais, independentemente de como os criadores de conteúdo se identificam. A chave é incorporar esses princípios ao conteúdo. Na SpotOn, ela tem como objetivo "destravar o valor trazido pelos jornalistas" ao capacitá-los como criadores de conteúdo, ao mesmo tempo em que treina criadores de conteúdo interessados em informar de forma substancial com o rigor do jornalismo.
Reavaliação da objetividade
O ideal de objetividade distanciada, há tanto tempo defendido, também está se transformando. O painel desafiou a noção tradicional de objetividade jornalística, sugerindo que o debate evoluiu.
Kassy Cho, cujo veículo, Almost, foca em notícias internacionais para o público jovem, explicou sua decisão de ir além da neutralidade estrita, principalmente ao cobrir questões com claros desequilíbrios de poder. "O jornalismo tem a ver com responsabilidade e, às vezes, quando você é neutro e dá espaço para os dois lados, isso pode acabar gerando narrativas nocivas", diz, citando como exemplo a cobertura da mudança climática ou de Gaza. "No Almost, nós tomamos a decisão editorial de chamar a guerra em Gaza de genocídio na nossa cobertura porque essa era a verdade, era o que estávamos vendo. Ter clareza moral não é prejudicial, mas às vezes a neutralidade significa que você está se calando e sendo cúmplice."
Sanne Breimer, fundadora do Inclusive Journalism, acrescentou que a verdadeira objetividade é uma ilusão. "Pensar que eu nasci um ser humano objetivo simplesmente não condiz com a realidade", disse, ressaltando a importância de reconhecer como a origem de uma pessoa molda suas perspectivas.
Admitir que nenhum jornalista é verdadeiramente uma folha em branco, pois todas as pessoas carregam sua origem e perspectiva, estimula uma relação mais honesta com a audiência. Isso muda o foco de uma objetividade inalcançável para objetivos alcançáveis, como imparcialidade, justiça, precisão e transparência na abordagem.
Monetização com integridade
As considerações éticas se aplicam também a como essa nova forma de jornalismo é financiada e, neste caso, a transparência se torna uma necessidade. Gottipati contestou o mito segundo o qual o público não tem interesse por conteúdos patrocinados. Na experiência dela, a audiência é experiente e se incomoda muito mais em ser enganada do que com conteúdo patrocinado claramente sinalizado e alinhado aos valores defendidos. "O que eles não gostam é de serem enganados", disse.
O Almost, comandado por Cho, tem um modelo alternativo, financiando suas operações com um estúdio de criação de conteúdo e campanhas de comunicação para organizações sem fins lucrativos. "Nós realmente não vemos o jornalismo e o ativismo como opostos porque o jornalismo, no fim das contas, é sobre falar a verdade aos poderosos", argumentou.
Construindo em terreno alugado
No entanto, mesmo os criadores de conteúdo mais éticos operam em um ecossistema que eles não controlam. A dependência de plataformas como TikTok, Instagram ou X representa uma vulnerabilidade constante. Cho contou que o perfil do Almost no TikTok foi repetidamente suspenso por causa de conteúdos considerados problemáticos com base em regras opacas da plataforma. A maior parte deles era de reportagens sobre Gaza ou a Síria, mesmo estando alinhados aos padrões jornalísticos. Cada suspensão significa perder abruptamente uma conexão vital com a audiência que foi cuidadosamente cultivada ali.
Breimer aconselhou os criadores de conteúdo a não dependerem de plataformas. "Seja inteligente com a sua estratégia de negócios. Colete os endereços de email das pessoas porque eles não podem ser tirados de você", sugeriu. Ela também clamou por solidariedade. "Eu adoraria ver nessas plataformas mais cobertura sobre os jornalistas que estão em perigo, conteúdos defendendo a profissão."
Lições dos criadores de conteúdo para a mídia tradicional
A mídia tradicional tem muito a aprender com os criadores de conteúdo, principalmente em relação ao engajamento da audiência e transparência. Cho observou que o público jovem frequentemente se volta para os criadores de conteúdo porque eles sentem que a mídia tradicional "tende a servir ao poder e não à verdade".
Breimer argumentou que a maior ameaça à mídia tradicional não é a disrupção externa, mas sim a resistência à mudança. "A maior ameaça à mídia tradicional é ela mesma", disse, clamando aos veículos estabelecidos que abracem a autorreflexão e aprendam com os criadores de conteúdo independentes. "Abrace o fato de que há jornalistas por aí com ideias novas que talvez você não conheça, mas com os quais você pode aprender."
Foto por Diego Figone