Com os modelos tradicionais de financiamento de mídia em desordem, vários meios de comunicação estão procurando maneiras alternativas de garantir sua lucratividade ou sobrevivência, entre elas, implementando um acesso pago para conteúdo, pedindo doações de leitores ou criando um modelo de membership [membresia ou associação] estabelecendo uma comunidade de apoiadores do seu trabalho.
Depois de examinar os modelos de associação em todo o mundo e falar com equipes em 50 redações, o Membership Puzzle Project (MPP) publicou um guia abrangente em setembro reunindo as melhores práticas e erros comuns.
A GIJN falou com Ariel Zirulnick do Membership Puzzle Project para saber mais sobre o guia, que foi produzido em parceria com o Lenfest Institute e Google News Initiative.
GIJN: Você diz que o jornalismo está enfrentando uma crise de confiança e sustentabilidade. Como uma membresia pode ajudar?
Zirulnick: A membresia é uma troca de mão dupla entre a organização de notícias e os membros do público. A transparência e a participação necessárias para implementar a membresia com eficácia são elementos para enfrentar os desafios da confiança que impedem as pessoas de apoiar financeiramente um projeto e torná-lo sustentável.
É assim que vemos a confiança e a sustentabilidade abordadas na membresia de uma forma que não são abordadas em outros modelos de receita que podem manter o público à distância.
No guia, conduzimos as pessoas através da diferença entre assinatura, doações e membresia e por que certas organizações escolhem modelos diferentes. O guia não é, de forma alguma, um incentivo para que todos lancem um modelo de membership, porque queremos que as pessoas pensem que esse é o melhor modelo de receita e envolvimento que existe. Mas achamos que, para alguns, ele responde a essa crise particular de confiança e sustentabilidade com a qual todos estamos lutando.
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A membresia é um modelo que as organizações estão tendo que olhar de uma nova maneira? E isso é algo que a mídia tradicional está começando a adotar, assim como as startups?
Existem várias organizações em todo o mundo que implementaram modelos de membership que não são startups, principalmente rádios públicas nos Estados Unidos, que realmente foram as primeiras a adotar um modelo de membership no jornalismo, e têm funcionado dessa forma por décadas.
Acho que uma coisa importante que tentamos enfatizar no guia é que há programas estabelecidos de membresia e rotinas parecidas com a membresia. Os programas são o contêiner que você constrói em torno das pessoas que apoiam financeiramente sua organização.
E também há rotinas de membros, que são fluxos de trabalho que conectam membros da audiência a jornalistas e ao jornalismo que estão produzindo. É assim que o jornalismo engajado se parece quando se torna parte da cultura da organização.
E muitas organizações que não tem modelos de membresia implementaram rotinas de membros. E isso é realmente importante quando você pensa em organizações tradicionais: elas não necessariamente removerão seu acesso pago e começarão a chamar pessoas de membros, mas estão começando a convidar as pessoas a participarem de maneiras muito significativas.
Sobre confiança e membership, a questão é as histórias que você cobre ou a maneira como você cobre as notícias em si? Ou também se trata de transparência sobre o financiamento?
Eu acho que são os dois. Quero dizer, certamente se trata de oferecer transparência sobre como você trabalha, como seu projeto é financiado, como você toma decisões, esse tipo de coisa. Mas também significa envolver as pessoas na produção do seu jornalismo. E isso não significa que você tenha que fazer isso em cada estágio e em cada história, mas significa abrir a produção real do jornalismo para o público desistindo dessa ideia de que o jornalismo é essa arte esotérica que só as pessoas que foram formalmente treinadas em jornalismo podem fazer. Começa perguntando aos membros do público o que eles sabem que você não sabe e encontrando maneiras de trazer o conhecimento deles para o trabalho.
Isso é muito fundamental para lidar com as preocupações com a confiança, mesmo que apenas 1% dos seus visitantes realmente aceitem essa oferta para ajudar a raspar bancos de dados municipais ou enviar seus comprovantes de aluguel para que você possa criar um registro público. Só o fato de que você abriu isso e qualquer pessoa que lê seu trabalho pode ver que você abriu é um sinal muito forte de que você não tem nada a esconder. Significa: O que fazemos é algo que qualquer um de vocês tem acesso.
Ariel Zirulnick. Foto cortesia de Ariel Zirulnick
Você destaca o trabalho do Maldita, um site de checagem de fatos baseado em membresia na Espanha, e como eles usam os membros de uma forma muito ativa, procurando especialistas para matérias específicas. Qual é a importância de submetê-los ao mesmo tipo de verificação de fatos que você faria para uma fonte que não estava conectada à sua organização?
É tão importante porque o Maldita é uma organização que luta contra a desinformação. Se eles errassem, se não fizessem esse tipo de controle rigoroso sobre as contribuições do público, eles prejudicariam toda a organização. Por serem tão transparentes, eles também podem se proteger contra acusações de agentes de desinformação de que eles próprios estão vendendo desinformação. Eles podem apontar para as milhares de pessoas que contribuíram para o seu trabalho.
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E embora nem todos os leitores sejam hiperenvolvidos, eles gostam do fato de poderem contribuir?
Eles gostam do que isso diz sobre o espírito de uma organização. No cerne está a ideia de que não temos nada a esconder. Se você deseja participar, nós o convidamos a fazê-lo.
Obviamente, há uma série de maneiras diferentes de como a membresia pode funcionar para diferentes veículos e publicações. Existe algo em particular que poderia funcionar bem para os veículos de jornalismo investigativo?
Acho que a principal coisa a entender com isso é que você não precisa oferecer total transparência e participação do leitor em cada coisa que fizer. A membresia não significa deixar que o público comande tudo, significa ser intencional sobre onde você abre seu trabalho para os outros.
Meu primeiro conselho é que você conhece seu contexto político e social melhor do que ninguém, e o MPP não finge de forma alguma que compartilhar seu trabalho é algo seguro de se fazer em todos os níveis.
Mas há organizações como o Maldita, o Daily Maverick da África do Sul e CORRECTIV, uma redação investigativa sem fins lucrativos alemã, [que são] excelentes exemplos. A adoção de formas integradas de trabalhar como uma organização investigativa se resume a identificar o estágio certo no qual envolver os membros, entender a motivação dos membros para participar e encontrar uma oportunidade de oferecer-lhes maneiras de participar que se conectem com essa motivação. E então colocar as salvaguardas adequadas no lugar.
O que essa equipe alemã fez com seus integrantes de forma inovadora ou surpreendente?
Um exemplo é que eles achavam que as pessoas mereciam maior transparência sobre o mercado imobiliário da cidade onde moram. Mas na Alemanha os jornalistas não têm direito a esse tipo de informação. Então, eles próprios desenvolveram uma ferramenta e convidaram os residentes de Hamburgo a fazer o upload de seus registros de propriedades. E com isso, eles criaram um banco de dados de registros de propriedades -- esses eram contratos legais que podem ser facilmente verificados. E assim, essa é uma maneira muito clara de garantir a veracidade das informações solicitada: documentos oficiais.
Às vezes, os bancos de dados que você deseja investigar simplesmente não existem. Não se trata de fazer um pedido com base na Lei de Liberdade de Informação. É que ninguém coletou essas informações, nunca.
Então, se antes tradicionalmente um jornalista ligaria para uma empresa e faria uma denúncia, ou receberia informação de um delator, esta é uma maneira de jornalistas investigativos falarem com seus membros sobre o que está acontecendo, obtendo histórias deles?
Com o jornalismo investigativo, há tradicionalmente duas fontes ou dois tipos de pontos de partida para as investigações: os jornalistas juntando as peças e percebendo que algo está errado, ou um delator entrando em contato com a organização de notícias e informando que algo está errado. Mas a membresia ou a ética de membership essencialmente abre uma terceira via, que é, suspeitamos que pode haver algo acontecendo, mas precisamos colaboração aberta e sustentada de dados para descobrir se é verdade.
Em lugares que perderam provedores de notícias locais, ou agências que tiveram que fazer grandes cortes, um modelo de membresia pode reengajar essas comunidades e reconstruir um relacionamento que seja novamente proveniente e destinado à comunidade?
Se for bem feito, sim. A membresia começa com os membros do seu público. E se você começar falando com os membros do seu público e descobrir o que eles acreditam estar faltando, o que precisam para viver suas vidas, você garante que o que produzirá do outro lado será algo que eles precisam ou querem.
Se você não tem essa pesquisa de público ao longo da vida de sua organização, as decisões são tomadas com base em palpites. Muitas vezes são feitas com base na hierarquia: "o editor pensa que isso é verdade e, portanto, é isso que vamos fazer". E assim, a pesquisa de público mantém você orientado e fundamentado nas necessidades da comunidade a cada passo. Essa é a pedra angular da membresia.
Se você tivesse que resumir suas recomendações principais, quais seriam?
A membresia não é uma campanha de branding que pode ser ativada e desativada. Não é uma assinatura com outro nome. É uma forma diferente de trabalhar e não é algo que você possa adotar.
Se você está planejando seguir uma estratégia de aumento de membros, precisa ser muito intencional em garantir que está disposto a oferecer ao público participação significativa e transparência. A palavra membro significa algo. E isso é algo que as pessoas parecem esquecer às vezes na pressa de encontrar uma maneira de ser sustentável. Quando você diz a alguém que ele é membro, você está dizendo que ele está entrando em algo e que ele espera certas coisas em troca. Portanto, realmente incentivamos as organizações a se perguntarem que tipo de relacionamento desejam ter com os membros do público antes de escolherem sua estratégia de receita e engajamento.
Este artigo foi publicado originalmente pela GIJN e reproduzido na IJNet com permissão.
Laura Dixon é editora associada da GIJN e jornalista freelance do Reino Unido. Ex-repórter do The Times de Londres, ela reportou na Colômbia, Estados Unidos e México. Seu trabalho foi publicado pelo Washington Post e Atlantic, entre outros, e ela recebeu bolsas de reportagem da International Women’s Media Foundation e do Pulitzer Center.
Imagem principal sob licença CC no Unsplash por Markus Winkler