Leis relacionadas ao aborto podem impactar o jornalismo

por Ashton Lattimore
Jul 4, 2022 em Temas especializados
Women holding signs about abortion.

O que significa um site "estimular" o aborto? Um novo modelo de lei antiaborto lançado em junho pelo Comitê Nacional de Direito à Vida (NRLC na sigla em inglês) forçaria qualquer pessoa que publica conteúdo online a se debater com essa questão, colocando jornalistas que cobrem aborto de forma justa na mira da lei.

O modelo legal — o qual a NRLC espera que seja adotado pelas legislaturas estaduais em todo os Estados Unidos — deixaria as pessoas sujeitas a penalidades civis e criminais por "ajudar ou incitar" o aborto, incluindo "hospedar ou manter um site ou fornecer serviço na internet que estimule ou facilite esforços para fazer um aborto ilegal".

Sem surpresa nenhuma, o texto não dá nenhuma orientação sobre como a cláusula deve ser interpretada restrita ou amplamente: ela se aplica a uma matéria que fala sobre como a medicação para o aborto é acessível pelo correio ou sobre o consenso médico de que ela é segura? E uma matéria sobre a abertura de uma nova clínica de aborto ou uma que trate do trabalho de profissionais de assistência ao aborto, defensores e doulas? É "estímulo" demais um site simplesmente lembrar a audiência que, apesar do vazamento do rascunho da decisão da Suprema Corte sobre o caso Dobbs v. Whole Women’s Healtho aborto continua sendo legal e as pessoas têm a liberdade de manter os procedimentos agendados? [No momento da publicação deste texto, o aborto era ilegal em 8 estados] 

Se for este o caso, além das clínicas que oferecem serviço de aborto e defensores que já enfrentam vigilância, perseguição e violência constantes do movimento antiaborto dos EUA, jornalistas em veículos com credibilidade como o Prism, DAME Magazine, Rewire News Group, Scalawag, dentre outros, poderiam enfrentar riscos legais por simplesmente fazerem o seu trabalho: combater a desinformação e levar aos leitores informação atualizada, aprofundada e baseada em fatos que reflete o estado da nação e ajuda a lidar com o seu lugar dentro desse contexto. 

É claro que este é o problema. Não é uma coincidência o fato da legislação atacar toda a infraestrutura informacional relacionada ao aborto, inclusive a cobertura jornalística. Notícia é informação e informação é poder. Quando as pessoas são empoderadas com conhecimento sobre seus direitos e como exercê-los, é muito mais difícil para o estado coagir e roubar das pessoas a autonomia sobre seus corpos. Potencializar o poder da informação e do jornalismo em nome de pessoas marginalizadas — o que inclui pessoas buscando assistência ao aborto — é inerentemente uma ameaça ao poder, razão pela qual tão frequentemente o poder recorre à repressão da expressão para nos manter em nossos lugares.

Há um amplo histórico nos Estados Unidos de esforços para silenciar a informação ligada aos direitos de pessoas marginalizadas e isso sempre incluiu o trabalho de jornalistas. No século 19, por exemplo, o Congresso apurou a "lei da mordaça" para impedir que abolicionistas fizessem petições contra a escravidão, e estados do Sul aprovaram leis que tornaram completamente ilegal o discurso antiescravidão. De forma crítica, tanto historicamente quanto nos dias de hoje, leis que reprimem a expressão não só dão a quem a age de má fé as ferramentas de criminalização e multas para silenciar aqueles com quem eles discordam, como também podem normalizar a violência física.  

De fato, a violência contra jornalistas se disseminou no século 19 e — de maneira crucial — não ficou restrita aos lugares onde o discurso antiescravidão foi criminalizado. Em 1837, uma multidão pró-escravidão matou o abolicionista e dono de jornal Elijah Lovejoy e destruiu a prensa da publicação no estado "livre" de Illinois. No ano seguinte, uma multidão com mentalidade semelhante incendiou o Pennsylvania Hall, local usado por abolicionistas para fazer seus encontros e que também abrigou a redação do jornal abolicionista The Pennsylvania Freeman.

Mesmo depois da abolição da escravidão, jornalistas enfrentaram ameaças constantes à sua segurança por ousarem informar com precisão sobre injustiças como o linchamento, sendo a principal delas Ida B. Wells. E mesmo nos dias de hoje, fica claro que as leis que oprimem a expressão são parte de uma constelação maior de práticas que incentivam a violência contra os grupos que elas perseguem. Veja só a onda de violência antigay e antitrans após a lei "Don’t Say Gay" da Flórida ou os professores, principalmente negros, que sofreram assédio, violência e até ameaças de morte após repressões contra a teoria crítica racial e discussões sobre injustiça racial na sociedade dos Estados Unidos. Agora, com uma lei que mira especificamente o discurso relacionado ao aborto, os riscos são especialmente graves já que muitas das jornalistas que lideram a cobertura sobre justiça e direitos reprodutivos são mulheres negras, que já enfrentam assédio desproporcional. 

Embora nenhum estado ainda tenha adotado o modelo legislativo do NRLC, há muitas razões para preocupação, uma vez que tanto leis antiaborto como essa quanto que oprimem a expressão "viralizam" com uma frequência alarmante atualmente, como aconteceu com os muitos que seguiram a lei altamente restritiva do aborto do Texas ou a lei homofóbica "Don't Say Gay" da Flórida. A verdade é que o NPLC já teve uma de suas leis antiaborto adotadas em Nebraska. Se esse modelo legal ganhar força depois da queda antecipada de Roe v. Wade, isso vai levar diretamente à criminalização de jornalistas e veículos, principalmente aqueles liderados por negros, mulheres e outras pessoas marginalizadas que estão no centro do debate sobre o aborto.

E a Primeira Emenda à constituição não ajuda muito. A lei proíbe "estimular o acesso ao aborto", o que teoricamente pode significar qualquer coisa — e isso é intencional. Em leis como essa, o ponto central são a crueldade e o tom vago. Os conservadores têm usado precisamente a mesma cartilha com as leis “Don’t Say Gay” e contra a teoria racial crítica — leis mal definidas e com formulação vaga deixam tanta incerteza sobre o que é proibido que as pessoas começam a policiar a sua própria fala por pura cautela. O resultado é que uma grande parcela do discurso é abafada sem que o estado precise sequer levantar um dedo para fazer cumprir a lei.

Embora se espere que cláusulas com essas sejam barradas por violarem a Primeira Emenda, devido ao tom vago e generalista, não é mais certo que a Suprema Corte dos EUA ou os tribunais federais se alinhariam a precedentes de longa data para agir nesse sentido. Tribunais estaduais esmagadoramente controlados por republicanos provavelmente também não seriam um obstáculo. Por isso, se o modelo de lei for adotado e permitirem que ele se estabeleça, ativistas antiaborto com muitos recursos financeiros poderiam usá-lo para envolver veículos em processos legais dispendiosos, gastando tempo e dinheiro cruciais para a continuidade do trabalho jornalístico.

À medida em que modelos como o do NRLC ameaçam se proliferar, é mais do que urgente apoiar o jornalismo que não trata o aborto como uma questão abstrata de "guerra cultural", e sim que se envolve seriamente com o impacto humano gerado pela restrição ao seu acesso. Isso significa continuar a ler, compartilhar, oferecer ajuda financeira para os seus veículos favoritos sempre que possível e também apoiar organizações que oferecem assistência legal a redações. 

Enquanto isso, àqueles que trabalham na mídia, mesmo se não podemos contar com a proteção do sistema legal, devemos continuar a informar sobre os fatos relacionados ao aborto, responsabilizando os poderosos e lançando luz não só sobre fanáticos antiaborto mas também sobre o trabalho essencial que está sendo feito para defender o acesso ao aborto em todo o país. Por mais que leis como a do NRLC consigam criar uma mídia acuada pelo silêncio ou que só produz matérias impotentes "que escutam os dois lados" sobre direitos reprodutivos e justiça, depende de nós disparar o alarme, resistir e continuar "estimulando" os leitores a se manterem informados e tomarem uma atitude.


ATUALIZAÇÃO: O NRLC removeu o link que continha o modelo de lei e bloqueou o acesso ao seu site. O texto da lei proposta pode ainda ser visto aqui, usando a ferramenta Wayback Machine.

Este artigo foi originalmente publicado pelo Prism e republicado aqui com permissão.

Foto por Manny Becerra no Unsplash.