Jornalistas periféricos do Brasil criam futuro comunitário para o jornalismo

Jun 29, 2023 em Notícias locais
Favela in Rio de Janiero

Sobre os morros nos arredores do Rio de Janeiro ficam as favelas, bairros de classe trabalhadora, cada um com sua própria identidade, cultura e demografia. Essas comunidades também são em grande parte desfavorecidas: conexão à internet irregular, falta de água potável, crime organizado e violência policial são todos desafios diários que os moradores enfrentam, mas raramente são vistos na cobertura dos grandes veículos de mídia brasileiros. 

Para atender essa necessidade, uma nova geração de jornalistas brasileiros das favelas do país, quilombos e outras comunidades periféricas fora das grandes cidades – que não recebem o mesmo nível de suporte, infraestrutura ou segurança como o resto da cidade – lançou plataformas para centralizar as experiências e perspectivas de seus moradores e lutar por justiça para suas comunidades. "O objetivo é mostrar o que está dentro em vez do que está fora", disse Raimundo José, repórter da TV Quilombo, durante um painel em maio no Festival 3i, no Rio de Janeiro. "Nós acreditamos fortemente que não há ninguém melhor para contar nossas histórias do que nós mesmos." 

É o que se chama de "jornalismo periférico" no Brasil, explicou Daiene Mendes, cofundadora do Favela em Pauta: "a ideia é propor uma alternativa à cobertura elitizada, feita de cima para baixo, que pode alimentar os preconceitos e estereótipos das audiências. Em vez disso, o objetivo é informar 'a partir das pessoas, para as pessoas'."

No Festival 3i, três jornalistas periféricos discutiram como seu trabalho foca nos moradores de suas comunidades. Eu também conversei com Mendes sobre a importância de ouvir vozes de dentro das comunidades periféricas e sobre como a abordagem pode servir como um modelo de jornalismo orientado pela comunidade em outros lugares.

História do jornalismo periférico

As comunidades periféricas no Brasil foram moldadas pela história singular do país. Exôdos rurais do interior para as grandes cidades nos anos 1970 e 1980 deram origem às favelas de hoje, enquanto os quilombos foram formados ao longo dos séculos por escravizados que conseguiram escapar e seus descendentes. Hoje, o Brasil tem mais de 11.000 favelas e 6.000 comunidades quilombolas. Essas comunidades estão crescendo também: hoje, elas são o lar de cerca de 16 milhões de pessoas, em comparação a 11 milhões em 2010. 

Em 2002, as relações entre a imprensa tradicional brasileira e as comunidades periféricas ruíram com o assassinato trágico de Tim Lopes na Vila Cruzeiro, no Rio. A polícia restringiu severamente o acesso à favela após o incidente. "A relação entre a cobertura da imprensa e a favela mudou", diz Mendes. "Agora, para jornalistas entrarem em uma favela, é por trás do muro da polícia. Isso muda fundamentalmente como você vê a favela."

Após o assassinato de Lopes, reportagens sobre a favela assumiram uma ótica de segurança, destacando o crime organizado, assassinatos e ações policiais em detrimento da cobertura de problemas cotidianos, como acesso a água corrente, explica Mendes. Com o acesso restrito, vozes de dentro da favela foram silenciadas. "A versão oficial do que acontecia na favela se tornou a versão da polícia", diz Mendes. 

Isso foi especialmente verdade durante as operações policiais de 2010 nas favelas do Rio, que buscavam "pacificar" o crime organizado no período que antecedeu a Copa do Mundo de 2014. As operações resultaram em violência generalizada, incluindo brutalidade policial. Elas serviram como um sinal de alerta para jovens jornalistas e comunicadores nas favelas. "A forma como somos tratados é tão brutal, e tão violenta, que você precisa poder gravar para ter evidências", diz Mendes.

O jornalismo periférico surgiu como uma resposta, fazendo uma cobertura sob a perspectiva própria das comunidades e ao mesmo tempo destacando as injustiças raramente cobertas pela mídia tradicional.

"A mídia tradicional está olhando para a favela pelo lado de fora, mas a cobertura agora está vindo de dentro da favela", diz Mendes.

 

3i

Painelistas no Festival 3i no Rio de Janiero 

Satisfazendo uma necessidade

Ao informar sobre racismo, violação de direitos e brutalidade policial em suas comunidades, os jornalistas periféricos estão agindo como mais do que jornalistas. Eles são os defensores de suas comunidades.

"Não há distância entre mim e o lugar – eu sou o lugar, eu sou parte dele", diz a comunicadora comunitária e jornalistas Gizele Martins, que é da favela da Maré, no Rio. "Quem está longe não entende quem nós somos e o que nós fazemos."

A conexão com o espaço dá aos jornalistas periféricos uma perspectiva que normalmente falta aos jornalistas de veículos tradicionais. "Se eu entrevisto alguém, eu vejo essa pessoa como eu mesma – um semelhante, um igual – isso traz a identidade da pessoa para além dos estereótipos da comunidade dela", diz Martins. 

A importância de comunicadores em comunidades periféricas se tornou ainda mais evidente no auge da pandemia de COVID-19. Mesmo quando o então presidente Jair Bolsonaro estava minimizando a crise, jornalistas periféricos estavam comunicando a severidade do vírus e a necessidade da vacina. "A comunicação é um produto na indústria da mídia, mas necessária na periferia", diz Mendes. "Essa é a diferença. Quem usa a comunicação precisa da comunicação."

Empoderar comunidades que por tanto tempo foram marginalizadas e vítimas de racismo e estereótipos é parte de um objetivo maior de lutar por sua sobrevivência e dignidade. "A TV Quilombo mostra uma voz que sempre esteve aí, que sempre existiu, mas que foi silenciada principalmente pelos grandes veículos de mídia", diz José a respeito das comunidades quilombolas no Brasil servidas pelo seu canal. "Isso amplia a ideia de identidade dessas pessoas, o sentimento de pertencimento."  

Para jornalistas periféricos, esse tipo de trabalho não é só importante – é existencial. "Estamos resgatando nossa história, nossa identidade. Quando resgatamos isso, estamos defendendo a nós mesmos e nossas comunidades", diz Martins. "É a nossa vida que estamos defendendo por meio desse jornalismo."

Em direção a um futuro orientado pela comunidade 

O jornalismo periférico lança as bases para um futuro do jornalismo brasileiro como um todo mais orientado pela comunidade, responsivo e responsável. A capacidade de inovar com um orçamento apertado, por exemplo, é um aspecto que outros veículos comunitários podem emular.

"Nós não nos colocamos no contexto de sermos menores. Nós somos muito melhores, nós nos reinventamos com base nas nossas próprias dificuldades", diz Martins.

José lembra como a TV Quilombo começou com uma única câmera feita em papelão, e como usou uma vara de bambu para simular um drone quando precisou de imagens aéreas. "Para cada problema nós criamos uma solução", diz. 

Para Mendes, o jornalismo periférico representa um componente de um novo tipo de "jornalismos" plurais, que engloba a reportagem periférica junto com o jornalismo comunitário e o jornalismo indígena.

"A minha vida toda, eu vi desinformação sobre minha cultura, meu povo", diz Mendes. "Comunitário, periférico, local – todas são categorias para tentar pensar em um novo sistema de comunicação capaz de compartilhar a memória de ser um povo, de ser humano."

Ou, como diz o jornalista periférico de São Paulo Tony Marlon em resposta a comentários de que ninguém mais lê jornal de papel: "esse ninguém é minha mãe. [...] São nossos pais, nossas mães, nossas tias e nossos tios."

"Nada de nós, sem nós", diz.


Foto por danilo.alvesd via Unsplash.


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Jornalista freelancer

Devin Windelspecht

Devin Windelspecht é editor da Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet). Antes de trabalhar na IJNet, ele era jornalista freelancer e cobria preservação e direitos humanos.