Jornalistas latino-americanos se autocensuram diante de recuo na liberdade de imprensa

Sep 27, 2022 em Liberdade de imprensa
safasf

A tendência é crescente na América Latina: políticos estão cada vez mais estigmatizando a imprensa e voltando os cidadãos contra os jornalistas que, por sua vez, se autocensuram com medo de represálias de autoridades do governo.  

O jornalista Óscar Portillo viveu isso diretamente quando trabalhava em El Salvador no El Diario de Hoy. Ele testemunhou o governo do presidente Nayib Bukele intimidando seus colegas e tentando barrá-los de coletivas de imprensa.

Certa vez, ele se viu involuntariamente em um incidente que foi um prenúncio da relação entre o governo do país e a mídia. "Em determinada ocasião, quando Bukele ainda fazia coletivas de imprensa, estava esperando na sala de imprensa da Casa Presidencial. Uma mulher do setor de protocolos puxou meu crachá de imprensa com bastante força e perguntou de onde eu era", relembra Portillo. "Eu falei para ela que trabalhava para o El Diario de Hoy. Uma colega a questionou por ela ter puxada meu crachá. Ela estava verificando quem era do El Faro e da Revista Factum para impedir que esses jornalistas entrassem."

Portillo notou que os repórteres estavam recorrendo à autocensura para evitar inspeções ou serem barrados em coletivas de imprensa. Tempos depois ele abandonou a carreira de jornalista devido às más condições de trabalho e ao crescente assédio direcionado aos repórteres.

A liberdade de imprensa em deterioração em El Salvador reflete tendências em uma região que vem sofrendo a queda mais acentuada no Índice de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Dos 180 países ranqueados, El Salvador ocupa a 133ª posição, tendo caído 18 posições desde a classificação anterior.

O índice dá pontuações de 0 a 100 a todos os países com base em cinco indicadores. Países com pontuação entre 85 e 100 estão em uma "situação boa" de liberdade de imprensa, de acordo com o índice, enquanto aqueles entre 55 e 70 pontos são classificados como "problemáticos". El Salvador está na categoria imediatamente inferior, com pontuação entre 40 e 55 pontos, considerada uma "situação difícil".

"A mídia está entre as vítimas da violência generalizada de El Salvador. Desde que assumiu o mandato em junho de 2019, o presidente Bayib Bukele vem atacando e ameaçando jornalistas críticos ao seu governo. Veículos que se expressam abertamente são assediados, e jornalistas que fazem a cobertura de segurança e gangues são criminalizados. O uso de trolls reforça a narrativa do governo, e informações estatais estão sendo mantidas confidenciais desde a pandemia", descreve o relatório da RSF.

Uma região "difícil"

O caso salvadorenho é emblemático da América Central, que vem sendo infestada por violência e acesso limitado a informações públicas. Mais abaixo no ranking da RSF estão Guatemala, Honduras e Nicarágua, com estes dois últimos países passando por violações à liberdade de imprensa particularmente severas.

Até mesmo a Costa Rica, por muito tempo considerada um oásis da liberdade de imprensa na região, está sofrendo grandes retrocessos nos últimos três anos. Em 2021, o país ocupava o quinto lugar do ranking da RSF, atrás apenas dos países escandinavos. Porém, tensões entre o novo governo, que tomou posse em 2022, e a mídia fizeram com que a Costa Rica caísse para o 26º lugar.

"O estado normalmente não interfere no trabalho da imprensa. No entanto, em 2022, o governo sujeitou alguns veículos e jornalistas a ataques verbais, e alguns órgãos estatais se recusaram a fornecer informações de interesse público aos veículos", afirma o relatório da RSF. O documento também observa que "apesar das tentativas do governo de vilanizar a mídia crítica, os jornalistas não enfrentam ameaças à segurança física ou risco de prisão, nem são monitorados".

Altos e baixos na América do Sul

Mudanças de governo na América do Sul também se refletiram em saltos e quedas no ranking de liberdade de imprensa. A Argentina, por exemplo, caiu dez posições em apenas oito meses depois da posse do presidente Javier Milei, saindo de uma situação "muito boa" para "problemática". 

O posicionamento agressivo de Milei em relação à mídia, particularmente aos veículos públicos, disparou alarmes após sua vitória. "É lamentável que o presidente Javier Milei possa, de um dia para o outro, anunciar o fim de uma agência de notícias que está na ativa no país há quase oito décadas. O desmanche da mídia pública representa uma ameaça real ao pluralismo na Argentina. O fechamento da Télam [agência estatal de notícias] é, para a Repórteres Sem Fronteiras, um duro golpe contra o jornalismo e o direito à informação", disse à época Artur Romeu, diretor do escritório da RSF na América Latina.

Outros países, como Chile, Colômbia e Brasil, melhoraram significativamente suas pontuações, mas continuam sofrendo com problemas de liberdade de imprensa.

"O novo governo liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva restaurou as relações normais entre a mídia e os órgãos estatais depois do mandato de Jair Bolsonaro, que foi marcado por hostilidade constante contra a imprensa", declara o relatório sobre o Brasil. "Mas a violência estrutural contra jornalistas, alta concentração da propriedade dos meios de comunicação e os efeitos da desinformação ainda impõem grandes desafios à liberdade de imprensa." 

ranking completo está disponível no site da Repórteres Sem Fronteiras.


Foto por Mads Thomsen via Pexels.

Este artigo foi publicado originalmente na IJNet em espanhol.