Há 50 anos, em junho de 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, pediu ao Congresso a aprovação de financiamento para prevenção e controle do abuso de drogas. Direto da Casa Branca, ele categorizou as drogas como "o inimigo público número um" do país e declarou "guerra às drogas" — que não se limitava ao país que ele governava. Para "derrotar o inimigo", ele disse, era preciso uma ofensiva mundial.
A América Latina sofreu um dos efeitos mais severos daquela política global. Hoje, meio século depois do anúncio da ofensiva, jornalistas da região se uniram para lançar um projeto colaborativo, Una guerra adictiva ("Uma guerra viciante"), através do qual eles pretendem expor as falhas da abordagem realizada e as consequências devastadoras sentidas em países como México, Colômbia e Brasil.
"Para nós, este aniversário era uma oportunidade de contar as histórias sobre essa política que não foi flexível nem autocrítica, e que teve muitas consequências negativas em nossos países", explica Andrés Bermúdez, do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística, um dos integrantes do projeto.
Una guerra adictiva reúne nove organizações que cobrem a América Latina: as iniciativas regionais Centro Latinoamericano de Investigación Periodística, Dromómanos e OCCRP; El Universal e Quinto Elemento - Laboratorio de Investigación Periodística, do México; El Faro, de El Salvador; IDL - Reporteros, do Peru; 070, da Colômbia; e Ponte Jornalismo, do Brasil. Por meio da colaboração, o grupo está preparado para cobrir grande parte da região, algo que uma única organização seria incapaz de fazer sozinha.
O projeto publicou até o momento duas reportagens. A primeira foca na decisão da Colômbia de fumigar plantações como estratégia primária para conter a exportação de cocaína para os Estados Unidos "em vez de oferecer às comunidades rurais uma alternativa" para seu desenvolvimento, diz Bermúdez.
A segunda, feita pela Ponte Jornalismo, lança luz sobre o impacto da legislação antidrogas do Brasil que, de acordo com o veículo, provocou encarceramento massivo focado majoritariamente em pessoas jovens e negras.
O grupo planeja publicar reportagens como essas mensalmente. Afinal, segundo Bermúdez, cada país tem seus próprios tópicos relevantes para explorar e seus "paradoxos" causados por essa guerra.
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A seção de opinião em espanhol do Washington Post, Post Opinión, tomou conhecimento da iniciativa e pediu a alguns desses jornalistas para escreverem colunas. "Una guerra fallida" (Uma guerra fracassada) foi o nome dado pelo jornal para este projeto especial.
Mael Vallejo, editor do Post Opinión, disse à IJNet que essa foi uma oportunidade de "ajudar a amplificar esforços locais". Apesar do jornalismo de alta qualidade, muitos dos veículos do projeto nem sempre têm acesso a uma grande audiência.
Juntamente com as referências a Una guerra adictiva, o Post Opinión publicou uma coluna de Fausto Salvadori, co-fundador da Ponte, explicando "A onda racista de encarceramento em massa do Brasil", um texto sobre a "Batalha tóxica da Colômbia contra plantações" e um terceiro sobre a militarização do México.
Una guerra fallida não buscou apenas expandir o alcance da reportagem sobre a guerra às drogas. Vallejo diz que a exposição adicional permitiu aos jornalistas da região mostrarem a leitores de fora da América Latina — especialmente nos Estados Unidos — como seus países vivenciaram e sobreviveram a essa guerra. "Nós queríamos que essas vozes da América Latina fossem lidas", explica.
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Salvadori acredita que a aliança regional pode "revelar visões e histórias sobre a guerra às drogas que são desconhecidas pela maior parte das pessoas". O impacto mais importante que esse trabalho pode gerar, ele acrescenta, é fazer os decisores políticos de cada país tomarem conhecimento dessas histórias e, em contrapartida, ajudar a "mudar a realidade de uma guerra que, por 50 anos, trouxe nada a não ser sofrimento para a América Latina".
"Está ficando claro para um número crescente de pessoas que tratar o uso e a venda de certas substâncias como crime foi um dos grandes erros da história, porque isso não ajudou ninguém que abusa dessas substâncias e só foi bom para dar mais poder aos países para matar e prender sua população pobre, negra e indígena, e criar grandes grupos criminosos", afirma Salvadori.
O jornalismo pode desempenhar um papel importante nos dias de hoje ao expor as consequências reais da guerra às drogas que, ele completa, "são muito piores do que as drogas em si".
Aldana Vales é editora do IJNet.
Foto por Isabela Kronemberger no Unsplash.