A jornalista que conseguiu colocar João de Deus na cadeia

Nov 2, 2020 em Jornalismo investigativo
Vitral de igreja

Ele era prestigiado por políticos e celebridades, como a apresentadora americana Oprah Winfrey, a atriz Shirley MacLaine e Xuxa. O curandeiro João Teixeira de Faria, o João de Deus, parecia deter a unanimidade de opiniões ao seu favor e sempre dizia: “Você consegue enganar alguém por algum tempo, mas é difícil enganar alguém por quase 50 anos”, referindo-se a seus trabalhos mediúnicos desde 1976.

Outros jornalistas tentaram desmascará-lo. Em 2014, o programa 60 Minutes, versão australiana, acusou-o de ser um impostor como curandeiro e abordou uma acusação de crime sexual contra ele, com base numa ocorrência policial. Durante a entrevista, ele se irritou e não quis responder as perguntas mais incisivas do jornalista australiano. Foi só depois do trabalho de investigação da jornalista Camila Appel que ele foi parar na prisão.

Escritora, autora de teatro e redatora do programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, Appel deu voz às vítimas: conseguiu que uma delas, a holandesa Zahira Mous, mostrasse o rosto no programa veiculado em 7 de dezembro de 2018. Logo depois, 350 mulheres denunciaram João de Deus por estupro e abuso sexual. Assim, não era mais possível ignorar seus crimes. Em uma semana, ele estava preso. Por causa da pandemia, desde 31 de março de 2020, cumpre prisão domiciliar. 

A história virou documentário: “Em Nome de Deus”, lançado este ano, pela Globoplay, com argumento e criação de Pedro Bial, roteiro de Camila Appel, direção de conteúdo de Fellipe Awi e direção de Monica Almeida, Gian Carlo Bellotti e Ricardo Calil. A investigação de Appel se estendeu fora do Brasil. Afinal, “John of God” tinha milhares de seguidores estrangeiros que o procuravam em Abadiânia, uma pequena cidade do interior de Goiás que se beneficiava da fama do curandeiro. Segundo Appel, seus cristais ainda são vendidos nos Estados Unidos. Está no documentário, por exemplo, que em Sedona, no Arizona, ele quis abrir um centro de atendimento e também foi acusado de estupro.

Nesta entrevista, Appel conta um pouco sobre os bastidores da investigação, seu cuidado com as vítimas e o que aprendeu com a experiência.

IJNet: Qual foi o pontapé inicial da investigação?

Appel: Quando Pedro Bial pensou em fazer uma entrevista com ele [João de Deus], eu comecei por conta própria a investigar. Não o conhecia. Queria entender aquela unanimidade. Procurei uma conhecida que viveu lá algum tempo. Ela foi reticente, não se sentiu à vontade, mas pareceu ter algo a dizer. Ela quis falar quando contei a ela que Bial tinha desistido da entrevista [porque não tinha fé no trabalho dele]. Ela me levou às primeiras mulheres. Uma das vítimas me mandou o link da publicação no Facebook feito pela holandesa Zahira Mous, que repercutiu muito em Abadiânia entre as mulheres. Eu achei a Zahira pelo Instagram. No início, ela estava ressabiada. Fomos conversando até acertar a entrevista.

Camila Appel
A jornalista Camila Appel. Crédito: Globo/Maurício Fidalgo.

Você tinha experiência em jornalismo investigativo?

Não. Mas sempre gostei de investigar coisas silenciadas, de pautas tabu, tanto que eu tenho um blog que fala de morte. Lá no Bial eu levo pautas delicadas como depressão, suicídio. Fico farejando onde eu vejo algo silenciado. Eram muitas notícias. A gente teve cuidado para separar o que era fato. Fiz um mapeamento, fomos ao Fórum de Alexânia. O João tinha uma mania de registrar tudo em cartório. Ele fazia a pessoa assinar que não era verdade as acusações. A gente viu muito isso. No assassinato de um taxista, por exemplo, no outro dia o pai do taxista registrou elogios ao João no cartório.

O jornalista precisa estar atento ao que parece unânime?

Acho muito importante isso. A gente aprende, vai testando os pontos de vista, a subjetividade que está ali. Se existe uma unanimidade, eu acho, é porque acontece uma padronização do discurso que é perigosa pois abafa outras vozes. Foi o que aconteceu com o caso do João, os outros discursos eram abafados. A sociedade acabou permitindo isso porque ele tinha conexões políticas, com artistas, com gente importante.

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Você chegou a ser ameaçada?

O João nunca me ameaçou mas coagiu uma entrevistada ao descobrir que ela tinha conversado comigo. Ela foi obrigada a assinar um documento em cartório dizendo que eu havia pago para ela mentir. Ele não chegou a me procurar, mas tinha meu nome e meu telefone. Ele sabia que eu estava apurando, descobriu antes da denúncia sair. Eu só soube disso depois. Ele também tentou derrubar o programa na justiça pouco antes da exibição. 

Qual sua avaliação da intimidade criada com suas fontes?

Eu tive que me aproximar delas com empatia, elas precisavam confiar em mim. Até acho que eu poderia ter saído menos traumatizada se não tivesse ido tão fundo. Mas se não fosse o nível de dedicação que eu tive, não teria conseguido. Eu estreitei meu relacionamento com elas, me abri também, eu dizia que elas podiam perguntar tudo ao meu respeito. Mas eu não perdi a análise crítica. Eu não me deixei tomar pela emoção. Inclusive, os meus chefes foram me guiando, questionando, pedindo que eu checasse mais coisas. Foi importante tê-los ali. 

Você teve medo de estar errada?

Na abertura do programa da denúncia, Bial citou meu nome. Considerou que era um crédito meu e que só isso me protegeria. Foi o dia mais difícil da minha vida. Eu estava correndo um risco gigantesco. Havia medo de não dar em nada e pelas vidas daquelas mulheres que confiaram em mim. João era um homem poderoso, muita gente famosa, que gostava dele, poderia defendê-lo. Chegaram a tentar difamar a holandesa Zahira. Mas eu tinha a impressão disso ser apenas a ponta do iceberg. Afinal, eu encontrei uma mulher molestada há 20 anos e outra naquele ano. No diário da primeira entrevistada, os detalhes relatados no texto escrito eram fortes. Ele ainda usava um mesmo padrão, tanto para abusar das mulheres quanto para encobrir o que fazia. Também ajudou nessa aposta o movimento #metoo, que estimulou as denúncias.

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O que lhe impressionou?

Mulheres que deixaram de acreditar na humanidade, que chegaram a tentar suicídio. Teve a filha dele, Dalva, uma grande vítima, estuprada desde criança, desacreditada a vida toda, tratada como desequilibrada. Teve a dona Maria que foi estuprada e depois alvejada de tiros por ele. Eu me surpreendi com o número de vítimas, com a crueldade e com a quantidade de menores de idade. Eu ouvi sobre uma criança de 9 anos estuprada por João na tal salinha. A família humilde do outro lado da porta, achando que era um tratamento especial para curar o câncer do pai. Depois do documentário, eu recebi muitas mensagens de homens dizendo: nossa, eu não sabia que mulheres eram tão desacreditadas. E de mulheres que decidiram contar para os maridos que tinham sofrido abuso de pessoas próximas.

O que você aprendeu com essa experiência?

Aprendi que nossa antena jornalística indica suspeitas que devem ser apuradas. Existem ferramentas excelentes para apuração, como busca de documentos em cartórios, fóruns, na Biblioteca Nacional e sedes de jornais locais. O relacionamento com fontes que vivenciaram e ainda vivenciam um trauma é profundamente delicado. É preciso respeitar o tempo do outro, acima de qualquer deadline. Sentir quando estão prontos para falar. Escutar o não dito, ter sensibilidade para entender limites. Ser sincero sobre os possíveis desdobramentos da investigação. A exposição pode gerar consequências negativas e positivas. É sempre bom deixar isso claro. Mas sinto que a exposição em um grande veículo mais protege do que coloca em risco, em termos de segurança física. O julgamento social sempre existirá, mas no caso desse tema específico, o jornalista e a fonte podem oferecer apoio mútuo e se fortalecerem para fazer uma grande história vingar.


Fabiana Santos é brasileira e mora em Washington. Ela é jornalista freelance, produtora e editora de vídeos, mestranda em Relações Interculturais e responsável pelo site Tudo sobre minha mãe.

Esta entrevista foi resumida e editada por questão de espaço. 

Imagem principal sob licença CC no Unsplash por Robert Thiemann.