Apoio à saúde mental de jornalistas na Ucrânia é crucial

por Katerina Sergatskova
Apr 2, 2024 em Temas especializados
Yellow fields beneath a blue sky

A população da Ucrânia está passando por guerras há mais de dez anos e dois deles foram marcados por uma invasão em larga escala que resultou em dezenas de milhares de mortes, deslocamentos em massa e a ocupação de um terço do território do país até o momento. Milhares de jornalistas e editores estão passando pelos mesmos desafios que a população que eles servem, e vivenciando pressão extra por causa das responsabilidades sociais maiores e o estresse decorrente da cobertura de assuntos traumáticos.

A escala do problema é enorme. De acordo com dados de maio de 2023 da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde da Ucrânia, entre 10 e 14 milhões de ucranianos precisam de apoio psicológico, muitos deles com sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. A demanda pode ser ainda maior que a apontada pelos dados oficiais.

Uma pesquisa de 2022 feita pelo Lviv Media Forum, uma organização voltada para a mídia local, revelou que 36% das redações ucranianas consideravam a assistência psicológica uma necessidade prioritária. Apesar da prontidão de órgãos internacionais na oferta de aconselhamento, conforme relatado pelo Dart Center for Journalism & Trauma ao grupo de informação do Global Forum for Media Development, há incerteza em relação à eficácia e adequação dos diferentes formatos de apoio. A Ucrânia também enfrenta uma carência crítica de profissionais capacitados para oferecer ajuda psicológica a jornalistas expostos ao trauma em condições hostis.

Jornalistas são expostos ao trauma mais do que outros profissionais. Às vezes eles precisam passar por eventos traumáticos repetidamente se a cobertura o exigir. Repórteres que lidam com imagens estão especialmente em risco, porque precisam ver materiais com eventos traumáticos dezenas ou centenas de vezes para editar e publicar.

Sempre que a Fundação 2402 faz treinamentos de segurança na Ucrânia, nós conversamos com jornalistas e editores sobre os riscos que eles assumem para cobrir questões relacionadas à guerra e como eles podem atenuá-los. Essa é a parte essencial de qualquer treinamento de segurança porque se você não estiver ciente dos riscos, pode acabar em pânico em meio a uma linha de frente tentando desembalar um torniquete para colocar em um ferimento na perna. E isso acontece com muita frequência. 

Nós também perguntamos aos participantes dos treinamentos sobre a saúde mental deles. Não é uma pesquisa oficial, mas mesmo assim as informações são reveladoras: um em cada dois trabalhadores de mídia reconhecem que têm ataques de pânico, sinais de depressão, esgotamento ou todos os três. Embora não haja um fim para a invasão da Rússia à Ucrânia no futuro próximo, uma psicoterapia orientada pelo trauma não parece fazer muito sentido porque muitas pessoas continuam vivendo em um ambiente traumático. Ao mesmo tempo, há um entendimento de que nós não temos terapeutas bem capacitados o bastante para lidar com a quantidade de jornalistas com problemas.

O estresse corrosivo das zonas de conflito não só ameaça o bem-estar individual como também compromete a integridade do trabalho jornalístico. Embora não seja impossível, não é fácil fazer jornalismo imparcial no seu próprio país enquanto foguetes e drones sobrevoam a sua rua todos os dias e o Kremlin aterroriza o mundo com ameaças nucleares. Mas para serem imparciais, jornalistas precisam ser capazes de administrar suas emoções e tomar decisões embasadas porque o produto final aparece diante dos olhos de uma audiência amplamente traumatizadas e ansiosa, que, também devido a problemas de saúde mental, tem mais dificuldade de distinguir a mentira da verdade ou a honestidade da conspiração. 

A informação se tornou uma ferramenta tão poderosa que ela pode moldar a tomada de decisão de todo um país em um prazo muito curto. Está claro que a verdade se tornou uma arma e um objetivo militar e os jornalistas se tornaram um dos alvos mais desejáveis. Por causa disso, muitos jornalistas morreram na Ucrânia no começo da invasão, em 2022, e na Faixa de Gaza, em 2023 e 2024. Por causa disso, o correspondente do Wall Street Journal Evan Gershkovich foi preso em Moscou, assim como muitos jornalistas russos e bielorrussos acabaram na prisão nos últimos anos. E ainda mais jornalistas ucranianos abandonaram a profissão porque não conseguiam suportar a pressão e muitos foram servir o exército.

O assédio online também se tornou muito mais visível. Jornalistas de destaque no mundo todo estão sendo atacados por trolls, políticos e figuras públicas por fazerem seu trabalho. A guerra só reforçou essa tendência tendo em vista que esses ataques mostraram ser eficazes para silenciar vozes críticas, enquanto as redes sociais não estão dispostas a mudar seus algoritmos e protocolos de segurança, e as redações sofrem para desenvolver as ferramentas certas para resistir a esses ataques.

A falta de políticas editoriais sob medida e de uma cultura de segurança resulta em autocensura e o afastamento da vida pública e/ou profissional. Problemas de saúde mental que não recebem o devido cuidado frequentemente levam a comportamentos destrutivos, falta de empatia, retraumatização e desconfiança nas comunidades.

A escala do problema é tão grande que precisamos de soluções extraordinárias o quanto antes. Junto com minha equipe e especialistas de destaque do mundo todo, estamos criando um programa de saúde mental para jornalistas e redações na Ucrânia, com o objetivo de ajudá-los a lidar com os problemas do estresse prolongado, esgotamento, ataques de ódio e trauma. O objetivo é equipá-los com ferramentas e conhecimento prático no nível individual e criar uma cultura de segurança no nível organizacional. Essa iniciativa é um salto em direção à democratização do acesso aos mais altos padrões de segurança em saúde mental.

O que pode ser feito?

Eu acredito que nós, como uma comunidade de profissionais de mídia, precisamos desenvolver novos hábitos. Lidar com problemas de saúde mental não é uma responsabilidade pessoal. Durante uma crise tão grande como a que estamos vivendo, no mundo todo, isso se torna uma necessidade humanitária. E como isso é tão importante, todo mundo deveria ter a capacitação adequada, como acontece como bombeiros e socorristas. 

Organizações como Dart Center for Journalism & Trauma, Headlines Network, ACOS Alliance, CPJ, ICFJ, IWMF e muitas outras já percorreram um longo caminho pesquisando e lidando com a saúde mental na área de mídia. Agora é a vez da mídia pegar os melhores exemplos de pesquisa e de experiências, aplicá-los em seu trabalho e disseminar as ideias sobre esses desafios e possíveis soluções para sua audiência. Grupos de autoajuda, redes de apoio de pares, treinamentos e o aumento dos padrões da cultura de segurança já mostraram ter efeitos de cura.

Não podemos acabar com o problema, mas podemos conter os efeitos dele. Nós podemos colocá-lo em nossa lista de tarefas e tratá-lo como uma rotina e, portanto, normalizá-lo.


Este artigo foi publicado originalmente no Journalism.co.uk e republicado na IJNet com permissão.

Katerina Sergatskova é jornalista e editora, e trabalha em ambientes hostis. Há mais de 20 anos ela cobre assuntos controversos, como violações de direitos humanos, guerra e terrorismo no Leste Europeu. No começo da invasão à Ucrânia, ela criou a Fundação 2402, uma iniciativa sem fins lucrativos dedicada a dar aos jornalistas e à sociedade civil equipamentos de proteção essenciais e capacitação em segurança. A missão é equipar as pessoas com as habilidades necessárias para sobreviverem e se protegerem durante esse momento excepcionalmente desafiador. 

Foto por Olga Subach via Unsplash.