Hostilidade ameaça o jornalismo investigativo na Etiópia

por Ermias Mulugeta
Sep 17, 2024 em Liberdade de imprensa
Ethiopian flag

Na Etiópia, segundo país mais populoso da África, o jornalismo investigativo enfrenta atualmente uma série de duros desafios: o público mergulhado em extremismo étnico e religioso, um mercado de mídia privada bastante partidário com pouca tolerância à reportagem independente, regulamentação governamental opressiva e, não menos importante, ameaças rotineiras, intimidação e prisões de profissionais da imprensa. Apesar dessa situação perigosa, alguns jornalistas ainda enxergam "centelhas de esperança" para o jornalismo vigilante no país.

Após quase duas décadas de propaganda e controle da mídia estatal, a Etiópia entrou em uma nova era depois da destituição da ditadura militar de longa data, a Derg, em 1991. Logo na sequência surgiu uma nova imprensa privada com diversidade de opiniões, mas o jornalismo crítico aos poderosos ainda enfrentava inúmeros obstáculos. Dois grandes impedimentos legais — uma lei antiterrorismo de 2009 e uma proclamação de 2020 sobre discurso de ódio e desinformação — tornaram a publicação de investigações cada vez mais arriscada. Houve vislumbres de esperança para a imprensa quando o vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Abiy Ahmed Ali, visto como um reformador, se tornou primeiro-ministro em 2018. Jornalistas presos foram libertados e o ambiente de mídia melhorou brevemente. No entanto, esse otimismo teve vida curta, e as condições se deterioraram rapidamente.

De fato, o estado atual do jornalismo na Etiópia continua terrível. O país ocupa a posição 141 de 180 países no Índice de Liberdade de Imprensa 2024 da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), uma queda de 11 posições somente desde o ano passado e 42 posições desde 2020. A dura situação é acompanhada por uma tendência alarmante de detenção de profissionais da imprensa. Um relatório de 2022 do Centro para o Avanço dos Direitos e Democracia descobriu que, entre 2020 e 2022, cerca de 60 jornalistas foram presos arbitrariamente na Etiópia, e outros dois foram mortos. De modo semelhante, um censo prisional realizado pelo Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ) classificou a Etiópia como o segundo pior encarcerador de jornalistas na África Subsaariana.

Essa hostilidade contra a imprensa e o surto recente de violência regional se combinaram e levaram dezenas de jornalistas — incluindo muitos repórteres independentes — ao exílio, de acordo com um relatório feito em conjunto pela RSF e o CPJ. E para aqueles profissionais de mídia que permaneceram no país, "a autocensura é generalizada, inclusive entre os jornalistas", destaca a RSF em sua análise sobre a Etiópia no Índice de Liberdade de Imprensa 2024. "Considerações étnicas, regionais e políticas são grandes preocupações em muitos veículos etíopes em detrimento do jornalismo independente, plural e equilibrado."

Cooptação da mídia

Um ex-editor-chefe de uma emissora de rádio muito conhecida expõe um grande obstáculo ao jornalismo independente e comprometido com a verdade no país. Ele explica que canais de TV estatais ou de propriedade de partidos produzem rotineiramente conteúdos que parecem ser investigativos, mas na realidade têm motivação política e objetivam atacar certos grupos políticos, pessoas ou sistemas. Ele acrescenta que os empresários de mídia, temerosos de represálias do governo, não respeitam a independência editorial e muitas vezes pressionam as redações para remover notícias críticas de sites e de outras plataformas.

"A integridade profissional dos jornalistas é uma fraqueza significativa que está contribuindo com o encolhimento do jornalismo investigativo" diz, fazendo uma crítica franca ao nível profundo de cooptação estatal em toda a mídia etíope. (O nome da pessoa está sendo omitido devido à preocupação de represálias do governo por ela falar abertamente). O ex-editor relatou sua experiência durante o conflito entre o governo federal e o grupo paramilitar Frente de Libertação do Povo Tigray, quando seus planos de uma reportagem investigativa foram impedidos pela intimidação do governo aos seus superiores. Ele acrescenta que a perspectiva de fazer pautas de responsabilização que expõem delitos do governo atual ou dos poderosos é "impensável" na maioria das redações.

Necessidade de infraestrutura educacional

O jornalismo investigativo na Etiópia também é mal-atendido pelo sistema educacional do país. O primeiro livro-texto de jornalismo escrito localmente na Etiópia só veio a ser publicado no início deste ano por Getachew Dinku e Abdissa Zerai, com o apoio do Fojo Media Institute (FOJO), que está intermediando a distribuição gratuita da obra nas 24 faculdades de jornalismo do país.

No entanto, vale notar que a Faculdade de Jornalismo e Comunicação da Universidade Addis Ababa, a maior do país, oferece apenas uma disciplina de jornalismo investigativo na graduação. Embora os estudantes possam fazer trabalhos sobre jornalismo investigativo de forma independente, a faculdade não tem uma área distinta e focada ou um currículo dedicado à reportagem investigativa.

"O jornalismo investigativo é uma das áreas de estudo desconhecidas e isoladas", diz um professor de jornalismo atuante há anos na Universidade Addis Ababa. "Eu sempre desejei que a universidade pelo menos tomasse a iniciativa de abrir um departamento de jornalismo investigativo na pós-graduação. Mas, por muitos motivos, como falta de professores qualificados, interesse dos estudantes, potencial reação negativa do governo e tantos outros fatores, a área é subestimada."

Dinku, ex-diretor da Autoridade de Mídia Etíope e professor universitário veterano, também destaca os desafios contínuos enfrentados para o estabelecimento do jornalismo investigativo no currículo educacional. "O governo começa a rotular especialistas como 'neoliberais' e rejeita o jornalismo investigativo como uma construção ocidental. Há uma aversão clara ao conteúdo em si", explica. Esse ambiente, acrescenta o professor, oferece pouca tolerância para pontos de vista diversos ou para a reportagem crítica.

Sem mudanças, Dinku alerta que o governo vai continuar usando a mídia predominantemente como uma ferramenta de propaganda e deixar o verdadeiro jornalismo investigativo cada vez mais difícil.

'Centelhas de esperança'

Maya Misikir, jornalista freelance que já publicou em vários veículos internacionais e palestrante frequente na Conferência de Jornalismo Investigativo Africano (AIJC) também reconhece que "o cenário de mídia polarizada dificulta o trabalho básico do jornalismo, que dirá a reportagem investigativa".

Mas, de acordo com Miskir, organizações de treinamento em jornalismo estão ajudando a combater essa tendência, como o FOJO e o IMS, embora ambos já não tenham mais presença física no país. Além disso, ela diz que eventos regionais e internacionais, como a AIJC e a Conferência Global de Jornalismo Investigativo (GIJC) podem começar a construir a próxima geração de investigadores (como parte desses esforços, a GIJN traduziu alguns de seus recursos para o amárico, idioma oficial da Etiópia).

Ela diz que esses eventos permitem o compartilhamento de conhecimento crítico e colaborações transfronteiriças entre jornalistas da região e do mundo. Eles desempenham um papel crucial na tentativa de apoiar e reanimar o jornalismo investigativo na Etiópia, apesar dos muitos desafios que ele enfrenta. E a jornalista acrescenta: "há centelhas de esperança".

Por exemplo, ela menciona uma investigação detalhada feita recentemente pelo The Reporter que se aprofundou nas atividades ilegais de garimpo de ouro na região do Tigray, devastada pela guerra. A reportagem focou no destino do ouro contrabandeado, principalmente os Emirados Árabes Unidos, traçando paralelos entre as minas no Tigray e as infames jazidas de diamante de sangue no Congo. Essa comparação sublinhou a presença de militantes armados e o controle supostamente exercido por militares sobre essas operações de mineração. 

No entanto, ela reconhece que alguns problemas estruturais ainda são obstáculos para o jornalismo investigativo, desde um público altamente partidário que despreza rapidamente reportagens críticas a um governo opaco que se recusa a divulgar dados e estatísticas fundamentais, passando pelos custos extras associados à reportagem de longo prazo. Falando de sua experiência pessoal, ela cita uma investigação na qual vem trabalhando há seis meses com vários colegas. O trabalho ainda não foi publicado devido à frustrante falta de acesso a informações e falta de resposta de potenciais informantes que temem consequências negativas.

Futuro

Está claro que a polarização da mídia na Etiópia colocou a profissão — e o jornalismo investigativo, especificamente — em uma posição muito desafiadora. Apesar disso, alguns profissionais se esforçam para manter a integridade e o equilíbrio de seu trabalho. Eventos internacionais e cursos de jornalismo investigativo estão dando a esses jornalistas novas técnicas, as quais eles estão tentando implementar independentemente do ambiente hostil. Porém, os jornalistas ainda temem serem rotulados injustamente com base em sua etnia ou religião, o que os impede de se envolver com o jornalismo investigativo. O governo exacerba essa polarização.

Ressuscitar e empoderar o jornalismo investigativo na Etiópia vai exigir investimento substancial e intervenções multifacetadas. Educação mais rigorosa, esforços mais sólidos para frear a polarização e letramento de mídia intensivo — tanto no trabalho quanto fora dele  — são essenciais para criar condições melhores para a liberdade de imprensa e o jornalismo de prestação de contas. Para um país que vai desempenhar um papel essencial no futuro do continente, é imprescindível que o jornalismo investigativo sobreviva. 


Foto por Kelly via Pexels.

Esta matéria foi originalmente publicada na GIJN e republicada na IJNet com permissão.